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Holocausto brasileiro: a construção da memória através da mídia

07/08/2019 às 20:55
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7 min
Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução

O documentário Holocausto Brasileiro, produzido em 2016 pela jornalista Daniela Arbex e pelo diretor Armando Mendz, é baseado no livro homônimo de Daniela lançado em 2013. Assim, ambos retratam a história da morte de mais de 60 mil pessoas internas do hospital psiquiátrico, nomeado como Hospital Colônia, localizado na cidade de Barbacena, no sudeste de Minas Gerais. 

Daniela, em entrevista de lançamento da produção audiovisual, conta sobre o documentário: “Dei esse nome primeiro porque foi um extermínio em massa. Depois, porque os pacientes também eram enviados em vagões de carga ao manicômio. Quando eles chegavam, os homens tinham a cabeça raspada, eram despidos e depois uniformizados”. Além disso, a autora não foi a única a comparar Colônia ao Holocausto, caracterizando a ideia de memória também referente e comparativo ao outro genocídio. O psiquiatra italiano Franco Basaglia, em visita ao Hospital no ano de 1979, afirmou sobre a situação ali vista: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”.

Criado em 1903, o antigo Hospital Colônia viveu um extermínio entre 1930 e 1980. Por décadas, o hospital recebeu pacientes além dos que apresentavam doenças mentais e psicológicas. Assim, homossexuais, prostitutas, alcoólatras, mães solteiras, jovens grávidas, crianças com alguma deficiência abandonada pelos pais, entre tantas outras pessoas que eram consideradas inadequadas ao convívio social, eram encaminhadas para o hospital. Os pacientes foram submetidos à fome, ao frio e às doenças, além de procedimentos de tortura, como lobotomia e eletrochoque. Muitos vinham a óbito e seus corpos eram vendidos às faculdades de medicina., totalizando mais de 1.800 corpos vendidos. 

A construção da memória

O produto, Holocausto Brasileiro, dá voz aos marginalizados que foram silenciados pela sociedade. Daniela Arbex afirma que ao construir o livro e o documentário – sendo a primeira vez em que as vítimas foram ouvidas – houve um impacto à sociedade brasileira, uma vez que essas memórias foram silenciadas por tanto tempo. A omissão e o silenciamento, dentre todo o genocídio, podem ser consideradas como a maior forma de agressão ao próximo. Silenciar as memórias, a história e os que vivenciaram ela, é permitir que a crueldade dos manicômios perdurem. 

Dessa forma, muitas pessoas compõem o documentário. Partindo de várias entrevistas, é possível ir além do que se é escrito no livro, uma vez que nele, a autora começa a dar voz às pessoas. Já no documentário, o peso é diferente: as pessoas estão falando por elas mesmas. Entre os entrevistados, Daniela nos apresenta ex-enfermeiras que afirmavam aplicar eletrochoque nos pacientes, funcionários que distribuíram injeções e que venderam corpos às faculdades, além de psiquiatras e ex-pacientes. Os sobreviventes, ao darem entrevista à Daniela, sentem saudade, tristeza, revolta e demonstram lembrar dos horrores que foram esquecidos por quem não esteve ali.

Luiz Alfredo, fotógrafo da revista “O Cruzeiro”, foi o primeiro a revelar as atrocidades ocorridas no hospital, mas afirma que apesar da publicação na revista, nada foi feito para por fim ao sofrimento dos pacientes ali presentes; “As denúncias de maus tratos nunca foram oficialmente investigadas e ninguém foi punido pelos crimes que aconteceram no Hospital Colônia por todos esses anos”, diz Luiz.

O Brasil desconhecia, até a publicação do livro, uma de suas maiores tragédias. Mais de 60 mil pessoas morreram naquele hospital. A Arbex afirma que a culpa é coletiva. Os brasileiros participaram de oito décadas de violação de direitos. Desde os médicos, até o Estado – que era responsável por cuidar daquelas pessoas, e que falhou. A cidade de Barbacena era também considerada protagonista deste genocídio. Os moradores, ou não entendiam, ou preferiam fingir que não entendiam o que ali acontecia, colaborando com uma omissão coletiva. 

Quem deve ser ouvido e quem deve ser calado? O silenciamento de décadas vai sendo sobreposto a uma realidade gritante. Realidade esta que não se tornou possível apenas com a circulação do livro, mas também com o documentário. A memória “Hospital Colônia” ganha voz, não só na cidade de Barbacena, como em todo o país. Fotos são expostas, pessoas que participaram do genocídio dão entrevistas, assim como as vítimas, que ganham visibilidade. Construindo então, uma memória através da mídia.

Pensar na construção da memória através da mídia é pensar na necessidade e na importância de dar visibilidade à mesma. A instância de se valorizar lembranças silenciadas torna-se um fato, uma vez que é preciso ir além ao se pensar na saúde mental e na maneira com que lidamos com ela, dando voz e valorizando vítimas do holocausto. Rememorando para que este passado não se torne presente. 

Sobreviventes que tiveram coragem de romper com o silêncio contribuem agora com a construção de uma memória. Sobreviventes que conquistaram espaço se tornaram pessoas que, além de identidade e CPF, possuem passado, presente e futuro.

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A luta antimanicomial

No fim da década de 70, movimentos foram capazes de denunciar abusos em instituições psiquiátricas, movimentando manifestações de resistência. A luta antimanicomial consolidou-se no dia 18 de maio de 1987, lutando assim pelo direito das pessoas com sofrimento mental, com o intuito de acabar com os manicômios no Brasil. A luta lembra da necessidade de se combater a ideia de que pessoas com sofrimentos mentais devem ser isoladas, quebrando com o preconceito que cerca a doença mental e os pacientes. 

Hoje, depois de uma construção de memória, o que se faz presente é a  Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe a proteção e direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, inovando o modelo assistencial de saúde mental. Sendo caracterizado por um movimento social de inclusão, quebrando com paradigmas de exclusão. 

A Lei em questão estabelece a responsabilidade do Estado para o desenvolvimento da política de saúde mental do Brasil, e é responsável por fechar os hospitais psiquiátricos, abrir novos serviços comunitários e acompanhar a implementação do mesmo.

O Museu da Loucura

O Museu da Loucura, localizado na cidade de Barbacena – MG, foi inaugurado no dia 16 de agosto de 1996, em parceria com a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), e a Fundação Municipal de Cultura de Barbacena (Fundac).

Ele está localizado na construção do antigo Hospital Colônia e busca resgatar não só as histórias, mas também as memórias do primeiro hospital psiquiátrico de Minas Gerais. O acervo é composto por textos, fotografias, áudio dos pacientes, vídeos, objetos e instrumentos de eletrochoque e lobotomia, que relatam a história do genocídio ali vivenciado.

O Museu da Loucura contribuiu com uma construção da memória, proporcionando a quebra do preconceito contra as pessoas com sofrimentos mentais e despertando a ideia de um passado que não se deve nunca mais virar presente.

O museu, com entrada gratuita, funciona de terça a domingo, das 9h às 11h45 e das 13h às 17h.

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Última atualização em 28/02/2024 às 15:29