“O cinema latino-americano nasceu como vontade transformadora da sociedade, antes mesmo de um gesto político capaz de efetivamente realizar essa transformação. Nasceu entre a poesia e a política, em parte por imposição da realidade, em parte por livre escolha”. A sentença é do crítico e pesquisador José Carlos Avellar (1936-2016), no livro A Ponte Clandestina. A constatação de Avellar, publicada em 1995 num estudo que se fixa na produção dos anos 1960 e 70 de nomes como Glauber Rocha (Brasil), Fernando Birri (Argentina) e Tomás Gutiérrez Alea (Cuba), entre outros, ainda reverbera no continente quase 25 anos depois. Que cinema latino-americano é esse que às vezes nos parece tão próximo e ao mesmo tempo tão distante? Que transformações ele ainda é capaz de propor num século XXI tão marcado por contradições e constantes mudanças tecnológicas que alteram as formas de fazer e consumir audiovisual? Em tempos globalizados, ainda faz sentido falar num cinema continental?
Estas são algumas das questões a serem debatidas durante a 12ª CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, a ser realizada entre 28 de agosto e 2 de setembro. Sob o eixo curatorial “Pontes Latino-americanas”, o evento vai se dedicar a exibir, discutir e questionar a produção na América Latina ao longo dos anos, uma produção que se preocupou em levar às telas, através de temas ousados e formas inventivas, a própria condição de continente periférico e colonizado. “A temática surgiu primeiramente porque, há cinco décadas, o cinema latino-americano chegou ao seu auge, com proposições radicais de vários países e nomes que se tornaram fundamentais desde aquela época. Existia, então, um diálogo entre as nações, em especial as de língua espanhola, que foi se alterando e desaparecendo ao longo dos anos”, comenta Francis Vogner dos Reis, um dos curadores da CineBH, junto com Pedro Butcher e Marcelo Miranda.
O cinema mais marcante feito na América Latina se construiu em torno da negação de formas industriais de produção e de buscas por expressividades próprias, que falassem de sua condição subdesenvolvida a partir da estética. “Compreender-se como periférico em relação a países de Primeiro Mundo foi algo que, em certa medida, pautou o melhor do cinema latino ao longo das décadas, principalmente desde os anos 1960. Essa produção perdeu parte de sua força em meados dos anos 1990, quando certo pendor industrial passou a se impor e a gerar filmes mais bem formatados ao mercado internacional, tendo por consequência a perda da singularidade de cada país e de cada proposta”, diz Marcelo Miranda.
Conversas com produtores do Brasil CineMundi (o evento de mercado que ocorre anualmente durante a CineBH) e a dificuldade de se circular com filmes latinos de maior proposição estética deram a deixa para que esta temática fosse desenvolvida, conforme ressalta Pedro Butcher. “Queremos falar um pouco do passado desse cinema e especialmente do presente: como seus modos de produção e circulação afetam a realização e mesmo a existência dos filmes. É uma tentativa de propor uma maior e mais efetiva integração entre os países latinos, através da exibição de títulos de grande importância histórica e de realizações contemporâneas que ainda trazem algo de novo”.
Na programação da 12ª Mostra CineBH no contexto da temática “Pontes Latino-americanas”, filmes em pré-estreia dividirão espaço com títulos do passado que ainda nos dizem muito sobre os diálogos entre os países, estética e tematicamente. Entre os trabalhos confirmados, estão as pré-estreias de Cocote (República Dominicana), de Nelson Carlo de Los Santos Arias, e La Telenovela Errante (Chile), de Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento; e curtas e médias de importância histórica, como Agarrando Pueblo (Colômbia, 1977), de Luis Ospina e Carlos Mayolo; Revolución (Bolívia, 1963), de Jorge Sanjinés; Isla del Tesoro (Cuba, 1969), de Sara Gómez; e Blablabla (Brasil, 1968), de Andrea Tonacci.
“Na América Latina hoje, por mais que partilhemos historicamente diversos aspectos políticos e sociais, os cinemas, em cada país, são formalmente muito diferentes. É importante criarmos pontes para dialogarmos uns com os outros”, destaca Francis Vogner.
Em termos econômicos, o que relaciona os países latinos no audiovisual são as fontes de financiamento. A dependência do Estado ainda é grande, através de editais públicos, processos de seleção e parcerias com canais de TV. Em termos de coprodução, os fundos internacionais tornam-se maneiras de complementar as possibilidades de realização de um projeto de longa-metragem, algo que poderá ser debatido nos encontros do Brasil CineMundi. “A proposta para esta edição da CineBH é, então, pensarmos juntos os caminhos possíveis de serem adotados para estreitar as relações no continente”, completa Francis.
HOMENAGEM | EL PAMPERO CINE – PRODUTORA ARGENTINA
De maneira a exaltar um destaque contemporâneo no atual cenário audiovisual latino-americano, a 12a CineBH presta homenagem à produtora argentina El Pampero Cine. Fundada em 2002 e composta por Mariano Llinás, Laura Citarella (que representará a produtora na CineBH), Agustín Mendilaharzu e Alejo Moguilansky, a El Pampero se define como a reunião de um grupo de pessoas dispostas a experimentar e renovar os procedimentos e práticas cinematográficas na Argentina. Desde sua fundação, o grupo tem sido reconhecido internacionalmente por filmes formalmente desafiadores e que se diferenciam da produção mais tradicional no continente tanto por caminhos estéticos quanto pelas maneiras de se viabilizarem e circularem.
Títulos como Balneários (2002) e Histórias Extraordinárias (2008), de Mariano Llinás, Ostende (2011) e La Mujer de los Perros (2015), de Laura Citarella, e O Escaravelho de Ouro(2014) e A Vendedora de Fósforos (2017), de Alejo Moguillansky, têm se destacado em festivais ao redor do mundo.
Em abril de 2018, o mais recente trabalho da El Pampero, La Flor, filme dirigido por Llinás e com duração de 14 horas, saiu como o grande vencedor do Bafici (Festival Internacional de Cinema de Buenos Aires), ganhando o prêmio principal e ainda o troféu de melhor atriz, dividido pelas quatro protagonistas do longa (Pilar Gamboa, Elisa Carricajo, Valéria Correa e Laura Paredes). O trabalho se tornou a grande sensação do ano na produção latino-americana e terá pré-estreia brasileira na programação da CineBH.
“A El Pampero surge na contramão da produção mais industrializada na América Latina e também de maior penetração internacional, que é a da Argentina”, diz um dos curadores, Francis Vogner. “O grupo, porém, segue caminho inverso ao que se vê em seu país. Seus realizadores negam os meios tradicionais de financiamento e de sistema de produção e distribuição, preferindo reinventarem formas próprias para fazerem seus filmes e os apresentarem ao mundo”.
As estratégias da El Pampero Cine serão apresentadas e discutidas durante a 12ª CineBH, que contará com a presença de Laura Citarella, uma das integrantes e sócias da produtora. Ela irá ministrar uma masterclass e participar das exibições de La Flor e de um longa de sua autoria, La Mujer de los Perros. “Ter a El Pampero na CineBH é o reconhecimento de algo novo que está acontecendo neste exato momento no cinema latino-americano e que propõe uma intervenção singular em etapas normalmente frágeis nas realizações do continente”, reforça Pedro Butcher.
Para Francis Vogner, as proposições alternativas de viabilização audiovisual defendidas pela El Pampero se conectam esteticamente aos filmes produzidos. “O caso de La Flor nos parece radical nesse sentido. De que forma um filme de 14 horas, dividido em três longas partes e com uma proposta narrativa muito evidente de se inserir no processo cultural através de um jogo entre os gêneros de cinema, vai atravessar os obstáculos de um circuito tradicional de exibição? Esta será uma das frentes da discussão que nos permitirá repensar, de maneiras criativas e propositivas, as relações do cinema latino com o mercado”.
TODA PROGRAMAÇÃO É OFERECIDA GRATUITAMENTE AO PÚBLICO.
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