Existem fatos que acontecem porque tinham que acontecer, outras que parecem que estavam escritas. Na realidade, a televisão, o cinema, o teatro, a revista e o jornal estão aí para contar histórias, com roteiros inusitados para causar impacto, qualquer que seja, em seu público. Mas também há outras histórias que são contadas na realidade, como se você fosse o personagem do filme e tudo a sua volta deveria ser filmado, documentado e contado para outras gerações. Algo parecido como o “Show de Truman”? É, pode ser. Na verdade, no caso do atleticano, ele possui filmes do Atlético para ver, revistas e livros para ler, mas nenhum deles foi necessário ter um roteiro. O enredo já existe e é construído na vida real. Então, o que se consome é apenas o retrato do que se foi testemunha.
As histórias inimagináveis de superação, que te fazem repensar sobre comportamentos e atitudes são de roteiros frequentes nas telas do cinema. Agora, imagina ver um “O Resgate do Soldado Ryan” na vida real? Se tratando de Atlético, o “Central do Brasil” talvez fosse mais compatível. Mas, na realidade, o Galo é um filme único e interminável, uma história que faz seus apoiadores pararem de participar apenas quando as cortinas se fecham e as luzes se apagam para eles mesmos. O enredo centenário do clube já apresentou frases típicas de cinema, como “o atleticano torce contra o vento”, “não é milagre, é Atlético Mineiro”, “eu acredito, “yes, we C.A.M”, “Galo é amor, não é simpatia”. Fala sério, todas as frases caberiam facilmente em um slogan cinematográfico.
Fazendo uma recapitulação, o Atlético foi o primeiro campeão da competição chamada por Campeonato Brasileiro em 1971, depois de já ter vencido a “Copa do Gelo” em 1950 e a Seleção Brasileira de Pelé em 1969, além de 23 títulos mineiros. De lá para cá, o Galo sempre manteve o seu protagonismo no cenário estadual e nacional. O Alvinegro já conquistou, até aqui, 46 campeonatos mineiros no total (o maior vencedor da competição). Porém, o clube não viveu apenas de glórias, como o seu torcedor acreditava que seria após 1971. O atleticano precisou passar por um caminho árduo, como uma travessia ao deserto do Saara ou uma escalada ao monte Everest, uma disputa olímpica no Mar Vermelho (quem sabe?), ou mesmo, ser resistência em plena ditadura militar.
Ainda na década de 1970, seis anos após o título brasileiro, p Atlético começa a viver suas cenas de drama, ficando com o vice-campeonato sem perder um jogo sequer e terminando a fase de grupos com 10 pontos a mais que o São Paulo, que faturou o título na disputa por pênaltis. Para acrescentar um ingrediente à história do Campeonato Brasileiro de 1977, o craque do time atleticano, Reinaldo, foi expulso de uma partida no início da competição, mas o julgamento do jogador só foi marcado para antes da final contra os paulistas, ficando, assim, fora da decisão. Ainda no duelo decisivo contra o tricolor, Neca e Chicão, do São Paulo, agrediram o meia Ângelo, que chegou a ter sua perna quebrada, mas nada foi feito por parte do árbitro da partida, Arnaldo Cezar Coelho. E, pelo visto, a regra não é clara, já que o atacante atleticano, Serginho, levou um carrinho dentro da área, na ponta direita do campo, mas o juiz, novamente, nada marcou.
Pouco tempo depois, em 1980, o Atlético tinha um de seus melhores (se não o melhor) times de todos os tempos, com João Leite; Orlando, Osmar, Luisinho e Jorge Valença; Chicão, Toninho Cerezo, Palhinha, Pedrinho; Reinaldo e Éder Aleixo, além de Procópio Cardozo como treinador. Esse grupo histórico protagonizou momentos memoráveis, mas passou por mais um drama, sem ter desfecho feliz no final da história, e, então, entraria um personagem extremamente relevante para o que aconteceria no fim, o Flamengo. Após vencer o rubro-negro no Mineirão, por 1 a 0, com gol marcado por Reinaldo, o Galo foi até o Maracanã e esteve atrás no placar duas vezes, com o “Rei” empatando em duas oportunidades. Quando o atacante atleticano iria marcar o seu terceiro gol, que daria o título para o Atlético, foi marcado um impedimento inexistente e, em seguida, o camisa 9 foi expulso pelo árbitro José de Assis Aragão, que, depois também expulsou Palhinha e Chicão e o título ficou com o time carioca.
No ano seguinte, não é preciso dizer muito. Os bastidores dessa cena do filme são complexos e controversos, mas o resultado é de cinco expulsões em uma partida definitiva na Copa Libertadores de 1981, contra o Flamengo mais uma vez, fazendo com que o Atlético fosse eliminado e o rival carioca avançasse até o título da competição e, em sequência, conquistasse o título mundial em cima do Liverpool. O protagonista dessa decisão foi o árbitro José Roberto Wright, que diz ter “aplicado a regra”, mesmo expulsando, também, todo o banco do Galo e não dando cartão a um lance de agressão pelo lado de um jogador do Flamengo. Segundo o renomado jornal britânico “The Guardian”, a partida foi uma farsa e “o maior roubo da história do futebol”. Mas o justo é que se assista a partida e que se tire as próprias conclusões.
Sabe aquelas cenas paralelas à história principal do filme que no fim casa exatamente com o final do enredo? Pois então, na década de 1980, o Brasil ainda vivia um período de ditadura militar e Reinaldo, do Atlético, foi uma das personalidades do futebol mais conhecidas por se posicionar contra o regime, junto de Sócrates, do Corinthians. Conhecido por suas comemorações erguendo o punho cerrado, o “Rei”, maior artilheiro da história do Galo e do Mineirão, deixou de ser convocado para a Copa do Mundo de 1982 por ser “intelectual demais”. O próprio ex-jogador já contou que o treinador da Seleção Brasileira da época, Telê Santana (que foi campeão brasileiro com o Atlético em 1971), junto com outras lideranças políticas do Brasil pediu o jogador para que se preocupasse apenas com jogar futebol.
O interessante disso tudo é que estão muito bem definidos os protagonistas e os atores coadjuvantes dessa história. Mas, veja bem, muitos que não são lembrados são muito importantes para a sucessão da trama. Algo que pouca gente se lembra é que em 1985, em uma semifinal contra o Coritiba, pelo Campeonato Brasileiro, o zagueiro Gomes, do Coxa, deu um carrinho para cortar uma bola e ela caminhou para o gol. Segundo Reinaldo, do Atlético, a bola entrou 20 centímetros, mas o juiz não deu o gol, porque, de acordo com o “Rei”, era de interesse do bicheiro Castor de Andrade, grande investidor do Bangu naquela época, que a final fosse contra o time alviverde. Porém, o Coritiba se sagrou campeão brasileiro daquele ano em cima dos cariocas.
Dois anos depois, o “Coringa”, “Duende Verde”, “Lex Luthor”, ou (o meu preferido) o “Chick Hicks” desse filme, o Flamengo, aparece novamente. O Atlético foi campeão do primeiro e do segundo turno do Campeonato Brasileiro de 1987, mas o regulamento previa um confronto de semifinal contra o vice do segundo turno, o rubro-negro. No jogo de ida, o Urubu venceu por 1 a 0, na volta, com uma expulsão de Paulo Roberto, do Galo, o Flamengo bateu os mineiros por 3 a 2.
Entrando, então, no universo dos heróis, sabe o “vilão nada a ver”? O “Homem Areia” do Homem Aranha, ou o “Charada” do Batman. Então, em 1994, surgiu um vilão esquisito na história do Atlético. Nas semifinais do Campeonato Brasileiro, o Corinthians foi o adversário do Galo e ambos tinham dois craques suspensos, Branco pelo lado corintiano e Éder Aleixo pelo clube mineiro, mas o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) concedeu efeito suspensivo apenas para um dos dois, no caso, para o jogador do time paulista. O Atlético foi eliminado naquela oportunidade por um placar de 1 a 0 no jogo da volta, com o gol marcado por Branco.
O “Charada corintiano” entrou em cena mais uma vez, na decisão do Campeonato Brasileiro de 1999. O Atlético venceu o primeiro jogo por 3 a 2. No segundo, há um toque claro de mão do lateral-direito corintiano, Índio, dentro da área, mas o árbitro Márcio Rezende de Freitas não marcou nada e o time paulista venceu a partida por 2 a 0. O terceiro jogo terminou em empate sem gols e o Galo ficou no vice mais uma vez.
Todo o drama vivido pelo torcedor atleticano até aqui ainda não era o pior. A temática de terror começa a partir de 2003, em que os apoiadores do Atlético viram seu rival conquistar títulos e em 2005 o Galo chega no seu fundo do poço, o rebaixamento para a Série B do Campeonato Brasileiro. O completo desespero dessa trama perdeu o controle, é aquele momento em que parece tudo perdido, não há mais esperança. Mas como toda boa história, chega um fiel escudeiro para ajudar o protagonista a dar a volta por cima. Podemos chamar esse personagem de “Camisa 12”, já que foi assim que os jornais chamavam a torcida do Atlético em 2006. Assim, o Galo partiu da 14ª colocação da Segunda Divisão ao título da competição. Ainda levou algumas sapecadas contra o seu maior adversário local, mas uma em específica foi a segunda maior goleada da história do confronto. Aqui tudo muda.
O vice-campeonato brasileiro de 2012 ficou marcado pelo mosaico do fiel escudeiro “Camisa 12”, escrito “CBFlu” nas arquibancadas da Arena Independência. Já o vice de 2015 partiu da incompetência da defesa atleticana mesmo. Não entrando no mérito do paraíso que o Atlético chegou em 2013, com os famosos milagres, canonização de São Victor do Horto, viradas incríveis e o título inédito da América, também vou apenas citar o fato do atleticano ter lavado a alma em 2014, quando despachou o Palmeiras, fez uma virada inacreditável contra o Corinthians em que levou três gols e depois fez outros quatro, repetiu a dose contra o “Chick Hicks” e conquistou a Copa do Brasil de 2014, de forma inédita, na primeira vez que a competição agrega os participantes da Copa Libertadores.
Mas, então, o que falta? A história agora vai para onde? Então, lembra daquele primeiro episódio, do título brasileiro de 1971? Ele ficou no quase em 2020, por apenas três pontos (era só uma vitória contra os rebaixados) para tirar a seca de 49 anos. Apesar do número 49 trazer lembranças mágicas do Bruxo ao torcedor, o roteiro precisa ser emblemático, histórico e de tirar fôlego. Precisa ser após uma pandemia afastar o seu fiel escudeiro do protagonista durante mais de um ano e retornasse para vencerem juntos o título brasileiro após 50 anos. É a obsessão do atleticano, ele não consegue pensar em outra coisa. A América não foi o bastante, nem a alma sendo lavada, num episódio bem “Dr. Estranho” ou “Dark”, em 2014. É preciso conquistar o brasileiro.
Se tratando de filmes de herói, o Atlético de 2021 tem simplesmente “Os Vingadores” em seu elenco, com o Homem Aranha (ou Homem Arana) e o Incrível Hulk para trazer a vitória de volta. O Atlético pode ser campeão brasileiro pela segunda vez, após 50 anos, neste domingo, 28 de novembro, no Mineirão, junto com o “Camisa 12”, contra o adversário de 2012 (CBFlu, lembra?). O enredo está todo pronto, o clímax do filme de 113 anos está por vir e todos estão com um nó na garganta em frente as telas de cinema. O que vai acontecer? O que será do Clube Atlético Mineiro?
Brincadeiras à parte, muitos se foram pensando nesse bicampeonato. Como já disse o grande Fred Melo Paiva em sua produção de Hollywood “Lutar, Lutar, Lutar”, “seja injusto com um grupo, que ele se tornará ainda mais forte” (mais um slogan de cinema). Mais forte do que nunca, o “Camisa 12”, ou melhor, a Massa, viu o fundo do poço e lutou bravamente durante anos em prol de um ideal, o Atlético. Hoje, ela pode verá o seu maior rival viver suas cenas de terror pelo terceiro ano seguido, enquanto pode repetir o feito do seu adversário mineiro de 2003, conquistando o Campeonato Mineiro, Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil no mesmo ano. E só para constar, o “Chick Hicks” é o principal concorrente do Galo ao título, mas está há oito pontos do Alvinegro, praticamente uma volta de vantagem (fazendo uma analogia ao filme “Carros).
Ao se deparar com um time que faz uma das melhores campanhas do Brasileirão, principalmente considerando os pontos corridos, o mantra do “eu acredito”, se tornou “eu não acredito”, “não pode ser”, “está acontecendo” (no gerúndio mesmo), mas a reparação histórica pode ser curtida pelo atleticano através do bordão “o Galo ganhô”. O mantra hoje é “vamos Galo, ganhar o Brasileiro”, depois que a Massa cante o “Vou Festejar”, da incrível Beth Carvalho (botafoguense, mas Galo de coração), assim como fez em 2006.