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O que o Censo não diz em voz alta?

Foto: Stefan Kunze 2015 (Unsplash)

Um dado nunca anda sozinho. Por trás de cada porcentagem, há decisões íntimas, processos coletivos e tensões espirituais latentes. O Censo Demográfico 2022 não é apenas uma fotografia estatística da fé no Brasil — é também um espelho social, revelando as rupturas, permanências e contradições da alma religiosa brasileira.

De 1872 até hoje, muita coisa mudou. O que antes era monopólio do catolicismo agora se tornou um território disputado, fluido e múltiplo. Em 1872, 99,7% dos brasileiros eram católicos. Em 2022, são 56,7%. Uma queda vertiginosa, mas que não pode ser explicada apenas pela perda de influência da Igreja — ela aponta para um fenômeno mais amplo: a reconfiguração da fé no Brasil moderno.

Os evangélicos agora somam 26,9% da população de 10 anos ou mais, um crescimento de 5,2 pontos percentuais em pouco mais de uma década. Ao contrário do que alguns setores interpretam, esse avanço não se deve apenas a estratégias de marketing ou à adesão de artistas e políticos. Trata-se de uma fé encarnada em contextos de vulnerabilidade, que floresce nos becos, favelas e periferias — onde o Estado falha, o mercado exclui e a violência silencia. É ali que muitas igrejas evangélicas se tornam comunidades terapêuticas, redes de apoio e espaços de dignidade.

Esse crescimento, no entanto, é complexo. Embora os evangélicos tenham conquistado relevância política e midiática, isso não significa uniformidade. Há uma diversidade interna gritante: do neopentecostalismo triunfalista às comunidades históricas centradas na Palavra, da teologia da prosperidade às experiências de fé comunitária e libertadora. Reduzir esse grupo a um bloco monolítico é um erro analítico e pastoral.

Por outro lado, os “sem religião” chegaram a 9,3% — um dado que deveria provocar reflexão nas igrejas. Não se trata, majoritariamente, de ateísmo ou rejeição à espiritualidade, mas de afastamento das instituições religiosas. Em especial entre os mais jovens e escolarizados, cresce uma espiritualidade não institucional, muitas vezes mística, ética e plural. A pergunta não é “em que você crê?”, mas “por que a igreja deixou de fazer sentido para você?”.

Os dados por faixa etária também merecem atenção: enquanto os católicos estão mais concentrados nas faixas mais velhas (72% entre os maiores de 80 anos), os evangélicos são maioria entre os jovens de 10 a 14 anos. Isso revela uma juventude em formação que está sendo moldada fora dos tradicionais marcos da fé católica, e que será protagonista da cena religiosa nos próximos anos.

Na análise por raça e escolaridade, o censo escancara desigualdades e também resistências. O perfil do evangélico médio é pardo, jovem, com ensino médio incompleto, enquanto os espíritas — grupo com maior escolaridade formal — são majoritariamente brancos e urbanos. Isso não significa superioridade de um grupo sobre outro, mas aponta para a necessidade de compreender como diferentes espiritualidades respondem a diferentes demandas existenciais e sociais.

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As religiões de matriz africana (Umbanda e Candomblé), ainda que numericamente pequenas, apresentaram crescimento expressivo (de 0,3% para 1,0%). Mais do que um dado numérico, é uma afirmação pública de fé e resistência diante de séculos de perseguição e racismo religioso. O crescimento desses grupos é também um sinal de que o Brasil começa, mesmo que timidamente, a reconhecer a dignidade das espiritualidades afro-brasileiras.

As tradições indígenas, agora melhor registradas pelo IBGE, revelam um dado ainda pouco discutido: 74,5% dos que se declaram praticantes de crenças indígenas são de fato indígenas — uma conexão entre fé, cultura e identidade que desafia os modelos ocidentais de religião institucionalizada. Aqui, espiritualidade não é apenas culto, mas modo de vida, cosmologia e pertencimento.

E quanto à alfabetização e nível de instrução? O dado mais surpreendente é que os espíritas lideram com folga o número de pessoas com ensino superior completo (48%). Em contrapartida, as tradições indígenas e o catolicismo apresentam os maiores percentuais de pessoas sem instrução formal. É tentador fazer julgamentos apressados a partir disso, mas talvez o dado revele mais sobre o acesso histórico à educação do que sobre a inteligência de cada fé. Ainda assim, ele nos chama a pensar: como diferentes espiritualidades dialogam com o saber, a ciência e a formação crítica?

O Censo 2022 não traz respostas prontas. Ele oferece perguntas urgentes. Que tipo de discipulado estamos formando? O que significa fé num país racializado, desigual e cada vez mais urbano? Como anunciar um Cristo encarnado num cenário de fragmentação religiosa, desconfiança institucional e fome de sentido?

A missão da igreja não é disputar hegemonia estatística, mas discernir os sinais do Reino. E, talvez, os dados do Censo sejam um desses sinais. Eles gritam por escuta, sensibilidade e coragem profética. Eles exigem que a igreja desça do pedestal e caminhe novamente com os pobres, com os que duvidam, com os que partiram — e também com os que nunca entraram.

Como afirmou Dietrich Bonhoeffer, “a igreja só é igreja quando existe para os outros”. Diante dos dados, a pergunta mais importante não é “quantos somos?”, mas “para quem existimos?”.