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A música “O Salto”, faixa do álbum “O Silêncio Q Precede o Esporro” (2003), da extinta banda carioca O Rappa, surgiu na música brasileira como uma forte crítica social ao Brasil das desigualdades estruturais. Por meio de uma letra metafórica e simbólica, a canção expõe as consequências devastadoras de um sistema que perpetua a marginalização das camadas mais pobres. Seu impacto não se limita à indignação pontual da época em que foi lançada que, por sua vez, faz também referência a outra época; ela é um retrato da exclusão sistemática que molda a realidade brasileira.
O Brasil é um país onde a mobilidade social se apresenta como uma promessa distante para a maioria. No clipe de “O Salto”, essa promessa frustrada se manifesta na trajetória de um operário que, após perder o emprego, é lançado à miséria e à invisibilidade social. Sem alternativas, ele se vê imerso em um ciclo de precariedade e desespero, incapaz de garantir a sobrevivência da própria filha. A narrativa musical dialoga com milhões de brasileiros que enfrentam a insegurança financeira, a falta de políticas públicas eficazes e o abandono estatal.
“Regaram as flores do deserto e regaram as flores com chuva de insetos” traduz a relação predatória entre a classe política e as populações periféricas. As “flores do deserto” representam os trabalhadores, que, mesmo em um ambiente hostil, tentam sobreviver e florescer. No entanto, a “chuva de insetos” simboliza a ação dos governantes, cuja interferência muitas vezes resulta não em progresso, mas em exploração, promessas vazias e políticas públicas ineficazes. É essa junção de fatos que nos mostra que a desigualdade social no Brasil não é uma fatalidade: é resultado direto de decisões políticas que perpetuam a pobreza e restringem oportunidades de ascensão.
O contexto histórico da canção resgata um dos episódios mais traumáticos da economia brasileira: o confisco das poupanças pelo governo Fernando Collor de Mello, em 1990. A medida retirou da população os valores acumulados em contas bancárias, provocando a ruína de milhares de famílias. Empresas faliram, o desemprego disparou e a pobreza se alastrou. No videoclipe, essa tragédia também se desdobra na história do operário que também é pai e que, diante do colapso financeiro, perde não apenas seu sustento, mas também sua dignidade. Incapaz de oferecer uma perspectiva de futuro à sua filha, ele encara o precipício social que tantos brasileiros experimentam diariamente.
A potência da música se intensifica ao questionar diretamente: “O que farias tu?”. A interrogação não é retórica, é um desafio à empatia e à reflexão. No Brasil, onde a pobreza extrema atinge milhões e o desemprego segue como um fantasma permanente, quantos não são forçados a escolhas extremas? Quantos não veem suas esperanças esfaceladas pelo peso de um sistema que naturaliza a exclusão?
“O Salto” faz alusão a um episódio histórico do nosso país, servindo como um espelho da realidade brasileira, que se repete em ciclos de promessas quebradas e vidas descartadas. O Rappa não romantiza a miséria, tampouco se limita à denúncia rasa. A canção impõe um dilema moral, colocando em evidência o abandono das classes populares pelo Estado e a forma como tragédias individuais se tornam combustível para a indústria midiática. Quando o personagem da música decide pôr fim à própria vida e à da filha, sua morte se transforma em manchete, “aos jornais deixo meu sangue como capital”, um verso que expõe a exploração midiática da dor e o lucro gerado em cima da miséria alheia.
Mais de três décadas após o governo Collor, O Rappa não existe mais, o vocalista segue em carreira solo e o Brasil continua aprisionado em um modelo socioeconômico que perpetua a desigualdade e priva milhões de brasileiros do básico para viver. O desemprego estrutural, a informalidade crescente, a precarização do trabalho e a falta de políticas públicas efetivas seguem levando inúmeras famílias ao desespero. “O Salto” se mantém atual porque a miséria não foi erradicada – pelo contrário, ela persiste e se reinventa sob novas faces, sempre atingindo os mesmos alvos: os mais pobres.