Estação de Engenheiro Corrêa

A tradição do barro que resiste no sertão mineiro

Como a arte que molda gerações luta para sobreviver em um dos territórios mais simbólicos de Minas Gerais

Elis BohrerRedação MM

A estrada que leva ao Vale do Jequitinhonha começa sempre com um silêncio. Não aquele silêncio ausente, mas o que nasce da distância: quilômetros de um sertão mineiro onde a poeira vermelha se ergue com o vento, as árvores retorcidas acompanham as curvas das chapadas e o horizonte parece descansar no próprio limite. É ali, entre serras quebradas e rios que resistem ao tempo, que a cerâmica do vale ainda molda histórias — não como um resquício do passado, mas como uma forma de insistir no futuro.

O Jequitinhonha é um território de contrastes. É lembrado pelo abandono político, pela pobreza histórica, pela seca que chega como personagem obrigatória. Mas também é onde comunidades inteiras transformaram argila em identidade, barro em símbolo, forno em memória. Essa tradição atravessa gerações e constrói uma das expressões culturais mais reconhecidas do Brasil.

Hoje, porém, cada peça moldada pelas mãos de artesãs e artesãos carrega um peso novo: o da permanência. Permanecer na terra onde nasceram e ao mesmo tempo garantir sustento virou um dilema para muitas famílias. A migração, antes destino sazonal, agora virou escolha definitiva para jovens que atravessam o país em busca de trabalho fixo. A cerâmica, que por décadas segurou comunidades inteiras, enfrenta o desafio de sobreviver à ausência daqueles que deveriam dar continuidade à tradição.

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A argila como herança

A história da cerâmica do Jequitinhonha não começa em livros, mas em quintais. Cada vila, cada bairro rural, possui seu próprio barro, seu próprio modo de preparar a massa, sua própria cor. É uma herança oral e prática, transmitida dentro de casa. Em alguns povoados, a primeira atividade da manhã é amassar a argila que descansou durante a noite, coberta por panos úmidos. Em outros, o trabalho começa ainda mais cedo, quando alguém caminha até o barreiro para retirar o barro fresco de uma cova cavada pela família.

O gesto é repetido com cuidado. A argila do vale não é apenas matéria-prima: é o elo que conecta mulheres e homens ao território. Cada etapa do processo guarda uma sabedoria ancestral. O preparo da massa exige equilíbrio entre força e suavidade. O molde inicial, feito com as pontas dos dedos, precisa obedecer a um ritmo ritual: o torno não é mecânico, é o movimento circular da própria mão. E o acabamento, feito com pedras lisas ou pedaços de sabugo, revela a delicadeza que transformou o Jequitinhonha em referência nacional.

Nas feiras de Belo Horizonte, São Paulo ou Rio de Janeiro, as peças chegam como expressão artística. No vale, elas são funcionalidade, sustento e identidade. A cerâmica ainda serve para cozinhar, armazenar, resfriar água. Mas também virou estética: bonecas icônicas, urnas, moringas de traços humanos, vasos esguios que lembram a secura do próprio sertão.

As mãos que moldam o barro também moldam o tempo. Cada peça leva horas, às vezes dias, para ganhar forma. O calor do forno, muitas vezes improvisado, completa o ciclo. É um trabalho paciente, quase meditativo, que exige persistência.

A produção cerâmica da região é historicamente associada a:

  • Araçuaí
  • Itinga
  • Campo Alegre
  • Coqueiro Campo
  • Santana do Araçuaí
  • Novo Cruzeiro
  • Povoado de Coqueiro Campo (famoso pelas bonecas)
  • Sucanga e outras comunidades rurais

Pesquisas da UFMG, UFSJ e UFVJM identificam o vale como um dos principais polos de cerâmica tradicional do país, ao lado do Alto do Jequitinhonha e do Serro.

A produção envolve:

  • Coleta da argila
  • Preparação da massa
  • Modelagem manual
  • Queima em fornos rústicos
  • Venda em feiras e associações

Trata-se de um trabalho tradicionalmente feminino, com forte relação familiar e comunitária.

As bonecas produzidas em comunidades do vale são mostradas em:

  • Museus
  • Bienais de arte popular
  • Exposições no exterior
  • Livros sobre artesanato brasileiro

Algumas ceramistas do vale tornaram-se referências nacionais, como:

  • Noemisa Batista (Araçuaí)
  • Dona Dô (Coqueiro Campo)
  • Izabel Mendes da Cunha (Itinga) – talvez a mais famosa, falecida em 2014
  • Artesãs da família Batista

A economia do barro e o desafio do presente

Durante décadas, a cerâmica foi a principal fonte de renda para centenas de famílias no Vale do Jequitinhonha. A produção artesanal sustentava comunidades inteiras, movimentava pequenas feiras e atraía compradores de outras regiões do país. Nas últimas duas décadas, porém, o cenário mudou.

A popularização da cerâmica industrial, a redução de compradores presenciais e a dificuldade de acesso ao mercado digital criaram barreiras para os artesãos. Muitos mantêm a produção, mas não conseguem competir com a lógica do comércio contemporâneo. A venda, antes garantida nas feiras regionais, agora depende de atravessadores que compram em grande volume e pagam valores muito abaixo do necessário para a sobrevivência do ofício.

Em muitos povoados, o barro segue presente, mas em ritmo menor. O que antes era trabalho diário virou atividade secundária. O pão de cada dia depende de salários vindos de outras cidades, de empregos formais ou temporários, de programas sociais. Nas casas onde a cerâmica ainda comanda o ritmo, o ganho mensal é incerto, oscilando conforme encomendas, clima, feiras e disponibilidade de transporte.

E há o mais grave: a mão de obra está envelhecendo. Os jovens que ajudavam no preparo da argila, na modelagem e na venda agora buscam oportunidades em cidades médias e grandes. O êxodo, evidente em toda a região, impacta diretamente o ciclo da cerâmica.

O êxodo silencioso

O Vale do Jequitinhonha vive um movimento de partida que raramente vira manchete. A migração não acontece de forma abrupta; é silenciosa, fragmentada, gradual. Cada família perde um filho ou uma filha para Belo Horizonte, Governador Valadares, Vitória, São Paulo ou cidades do interior do Paraná. Alguns seguem para áreas de mineração no Norte de Minas ou para colheitas no interior de São Paulo. São caminhos conhecidos por gerações, mas agora tomados como destino permanente.

A motivação é clara: a renda no vale é insuficiente para a vida cotidiana. E não se trata apenas de dinheiro. A expectativa de inserção profissional, acesso à educação, estabilidade e serviços básicos forma um conjunto que empurra jovens para longe. A cerâmica, por mais simbólica que seja, não compete com a promessa de oportunidades em outros lugares.

O impacto é direto na continuidade das práticas tradicionais. Sem juventude, não há sucessão. E sem sucessão, a técnica que já atravessou séculos corre risco de desaparecer em algumas localidades.

A mulher como guardiã da tradição

A cerâmica do Jequitinhonha é, em grande parte, obra de mulheres. Nas casas onde o ofício resiste, elas são responsáveis por cada etapa: coletam a argila, preparam a massa, moldam as peças, queimam no forno, organizam as vendas, atendem compradores e participam de associações artesanais.

São elas que mantêm o ritmo do trabalho mesmo diante da ausência dos filhos que migraram. São elas que preservam o modo de fazer, transmitindo a técnica para quem ainda permanece. Em muitos lugares, o ciclo do barro só continua porque mulheres decidiram não abandonar a tradição.

A boneca de rosto calmo, os traços geométricos, as moringas femininas — todas carregam a expressão do território. Em algumas peças, a maternidade aparece de forma explícita: mulheres segurando crianças, mulheres carregando cabaças, mulheres sentadas. É como se a cerâmica mostrasse, na própria forma, a realidade de quem a produz.

O território além da estética

Ver o Vale do Jequitinhonha apenas pela estética da cerâmica é reduzir o território à sua produção artística. Há muito mais em jogo. O vale é palco de desigualdades históricas, fruto de séculos de abandono político e ausência de infraestrutura. É um dos poucos lugares do Brasil onde a expressão “brejo” ainda significa acesso à água e onde comunidades rurais dependem de cisternas e de caminhões-pipa.

Mesmo assim, o território produz cultura com intensidade rara. A cerâmica não é a única expressão: há música, canto, bordado, histórias de encantados, religiosidade popular, festas tradicionais. Em muitas comunidades, a arte é o que garante permanência.

A produção do barro não é apenas trabalho; é a forma que o território encontrou para se narrar. Por isso, quando a tradição está em risco, não é apenas uma atividade econômica que se perde — é parte da própria memória do vale.

Associações, cooperativas e o esforço da reinvenção

Nos últimos anos, muitas comunidades se mobilizaram para enfrentar o declínio da produção artesanal. Associações de artesãos foram criadas em vários municípios, com o objetivo de organizar a produção, melhorar o valor recebido e ampliar o alcance das peças no mercado nacional.

Algumas iniciativas conseguiram parcerias com universidades e instituições de apoio ao artesanato. Outras apostaram em plataformas digitais e redes sociais. Há quem consiga vender diretamente para compradores em outros estados e até no exterior. Mas o alcance permanece limitado: falta acesso à internet, falta formação tecnológica, falta logística para envio das peças.

Ainda assim, a associação é uma tentativa de garantir que o vale continue reconhecido pela cerâmica. Elas também se tornaram espaços de convivência, onde artesãs trocam saberes, compartilham dificuldades e fortalecem a comunidade.

A reinvenção, porém, não pode substituir o que se perde com o êxodo. Há técnicas que dependem de prática diária. Há detalhes sutis que só o olhar de quem cresceu no ofício consegue perceber. A continuidade depende de transmissão — e a transmissão depende da permanência das gerações mais jovens.

O futuro possível

O Vale do Jequitinhonha enfrenta, ao mesmo tempo, fragilidades e potencialidades. A cerâmica é apenas uma das dimensões desse território. Mas é talvez a mais conhecida, a mais identitária, a mais capaz de revelar a complexidade do lugar.

O futuro do ciclo do barro dependerá de diversos fatores. Entre eles:

  • políticas públicas consistentes de valorização do artesanato
  • acesso à internet e infraestrutura para vendas digitais
  • formação para jovens e incentivo ao empreendedorismo local
  • ampliação das rotas turísticas culturais
  • iniciativas de memória e preservação da técnica

A arte do vale nunca precisou de luxo para existir. Ela nasce da terra, da necessidade, do cotidiano. Sobrevive porque carrega sentido. Mas a permanência da tradição dependerá de condições que permitam que novas gerações encontrem futuro naquele território.

Talvez a maior força do vale esteja justamente na sua capacidade de transformar o pouco em muito, o adverso em belo, o barro em símbolo. É essa capacidade que manteve a tradição por tanto tempo. E é essa mesma força que pode garantir que a cerâmica continue atravessando décadas — desde que o território não seja abandonado.

Quando o barro fala, o território responde

No fim, o Jequitinhonha não é só cerâmica. É um modo de existir. As peças expostas nas prateleiras das cidades grandes carregam, dentro de si, a história de mulheres e homens que insistem em permanecer. Cada peça que sai do forno é uma declaração silenciosa de resistência.

O futuro dessa tradição não depende apenas da economia, mas de reconhecer valor onde ele sempre existiu. E, no Vale do Jequitinhonha, esse valor está nas mãos que moldam, na terra que oferece, no território que insiste em criar, mesmo diante de tanta ausência.

O ciclo da cerâmica não se fecha. Ele se reinventa. A cada peça moldada, o vale se redesenha. E a cada geração que parte, a tradição muda de forma, mas não se apaga. O barro guarda histórias. E enquanto houver alguém para contá-las, o Vale do Jequitinhonha continuará falando.

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Amante da música, compositora e estudante de jornalismo. No Mais Minas é redatora nas editorias de entretenimento, cidades e moda.
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