Nessa semana, mais um caso de racismo veio à tona. Mais um caso no futebol. Sim, mais um. Digo mais um, mas tantos outros passam despercebidos. Casos como esse são diários, tanto para jogadores, famosos, quanto para pessoas comuns. O racismo é, muitas vezes, tão estruturado na nossa sociedade, que em muitas situações ele é banalizado. Quando digo banalizado, não é por ser algo banal, mas pelo fato de que muitas vezes as pessoas não dão a devida importância. Um outro caso famoso foi o do goleiro Aranha, em 2014, que na época jogava pelo Santos. O atleta foi insultado por uma torcedora do time adversário, onde foi chamado de macaco. Outros torcedores faziam sons imitando o animal. O caso aconteceu na Arena, em Porto Alegre, e só teve repercussão porquê as câmeras do canal ESPN Brasil flagraram a ação.
Devido a novembro ser o Mês da Consciência Negra, e agora, após um caso de racismo no fim de semana, a Globo Esporte fez um levantamento inédito que mostra que, quase metade dos atletas negros das Séries A, B e C sofreram racismo no futebol. O estudo foi feito com cerca de 163 jogadores e técnicos negros, de 60 clubes, sobre racismo no futebol brasileiro, e durou cerca de seis meses. Os resultados apontam que 48,1% afirmam terem sido vítimas de racismo no futebol. Diante desse cenário, é revoltante pensar que somente nessa temporada a Fifa e a CBF criaram protocolos de punição para tais atos discriminatórios. Punições essas que são minimamente rígidas.
Um outro caso que ficou conhecido recentemente, e que não envolve futebol, foi do porta-voz do Movimento Brasil Livre (MBL), Thiago Dayrrel, de Belo Horizonte, que teria participado de uma confusão onde teria agredido e chamado de “criola” a cozinheira do restaurante Takos Mexican Gastrobar, no bairro Savassi, na capital mineira. Segundo informações, o porta-voz teria reclamado do atendimento quando foi pagar a conta e acabou se exaltando. Com isso, uma das cozinheiras teria se aproximado pedindo para que ele se acalmasse, quando ele disse “Não coloca a mão em mim, sua criola”. Thiago Dayrrel teria agarrado a mulher pelo pescoço e chutado a perna dela, antes de ser detido por policiais militares. Ele alegou que só se defendeu ao ser agredido por quatro funcionários. A situação aconteceu no último dia 9.
E não foi a primeira vez. Após repercussão do acontecido, um outro caso envolvendo Thiago foi relevado. Em 2018, o jovem teria chamado uma outra pessoa de “criolo” e macaco em um outro bar de BH. Dessa vez, a vítima foi o correspondente bancário João Paulo de Moraes Amancio. De acordo com ele, na ocasião, Dayrrel estava em frente ao palco gritando palavras a favor de Jair Bolsonaro. Ele ficou pedindo para que usasse o microfone para continuar gritando, quando João Paulo chegou e pediu para que ele não atrapalhasse o show. E foi então que Dayrrel respondeu com “O que foi macaco, criolo? Sai pra lá”. Uma confusão começou e algumas pessoas tentaram separar a briga. O bancário não quis prestar queixa pois tinha medo de represália, mas segundo ele, quando viu o caso recente em que Thiago é acusado, decidiu se pronunciar.
Posso citar mais um exemplo que teve repercussão: a cantora Ludmilla foi chamada de macaca ao receber o prêmio de Melhor Cantora do ano no Prêmio Multishow de 2019.
Em sua conta no Instagram, a artista revela um vídeo onde mostra que, ao caminhar para receber o prêmio, alguém grita “macaca”, mas não é possível identificar quem foi. Junto ao vídeo, ela desabafa. “Cara, até quando isso? Olha, as coisas, pra mim, e eu acho que pra maioria dos brasileiros, nunca foram fáceis. E com preconceito e julgamentos pelo tom de pele, vocês só complicam as coisas”. Ela também manda um recado para os racistas: “A vontade de diminuir é tanta que não pensam nas consequências dos seus atos. Eu só queria deixar bem claro para vocês, racistas, que além da Justiça ser lenta, aqui as pessoas que praticam racismo comigo ainda não terem sido punidas, isso não significa que a cobrança nunca vai chegar, ou que ela está longe disso. Ainda bem que eu tenho meu Deus e uma família que não me deixa desmoronar diante dos racistas. A cobrança de vocês uma hora vai chegar”. Até hoje ninguém conseguiu realmente descobrir quem foi a pessoa.
Infelizmente, esses são apenas ALGUNS casos que foram expostos na mídia, fazendo com que tivéssemos conhecimento deles. Agora, imagina o tanto de situações que acontecem diariamente e que “ninguém” fica sabendo?
O que é racismo? E injúria racial?
Discriminar, verbo transitivo direto: Tratar de forma injusta ou desigual uma pessoa ou um grupo de pessoas, por motivos relacionados com suas características pessoais específicas (cor de pele, nível social, religião, sexualidade etc.); excluir. Verbo transitivo direto: Listar, classificar tendo em conta algum motivo específico; separar. Verbo transitivo direto e bitransitivo: Aperceber-se das diferenças; discernir. Verbo transitivo direto e pronominal: Construir um grupo distinto para não se misturar aos demais; distinguir-se por possuir algum tipo de preconceito étnico, religioso, sexual.
A diferença entre racismo e injúria racial está no direcionamento da ação. No racismo, esse ato se refere a todo um grupo social, já a injúria é uma ofensa que direcionada a um indivíduo, por sua cor ou etnia diferente.
O racismo é uma forma ou ato de discriminar uma pessoa ou grupo, de acordo com algumas características, seja ela sua raça, etnia, cor, religião ou origem. São ações que buscam separar, segregar, ou inferiorizar a pessoa em detrimento de outras, como impedir o acesso a estabelecimentos e negar emprego, por exemplo.
Racismo é crime no Brasil desde 1989, de acordo com a Constituição Federal de 1988, pela lei n.° 7716, de 5 de janeiro de 1989. É um crime inafiançável e imprescritível. A pena varia de 1 a 5 anos de prisão, de acordo com cada caso.
Diferente do racismo, que são ações que separam certos grupos sociais tidos como “minorias”, dos demais, a injúria racial é a ofensa feita a determinada pessoa, com referência também à raça, etnia, cor, religião, deficiência e origem dela.
A injúria racial também é crime, e é definida pelo artigo 140, parágrafo 3° do Código Penal. A pena é de 1 a 3 anos de prisão e multa. Também pode suscitar um processo cível a partir do qual cabe indenização.
De onde vem o racismo?
O racismo está tão intrínseco na nossa sociedade, que muitas vezes jogamos para debaixo do tapete alguns acontecimentos. Falas, que podem ser vistas como “nada demais” ou “com boa intenção”, reafirmam esse preconceito, como: “eu também tenho um pézinho na senzala”, “queria ter a sua cor pra ir à praia e pegar um bronze”, “sou branca, mas tenho alma preta”, “eu também sofro racismo quando vou à Europa”, “não existe branco no Brasil, somos todos misturados”.
Os brancos têm romantizado o que é ser negro no Brasil. Pensam que se “compararem” com a cor da pele negra, vão estar diminuindo ou anulando o racismo, mas só o reafirmam. Romantizar a escravidão, ou simplesmente esquecer e apagar o quanto ela foi cruel, e todas as suas consequências que repercutem até hoje, é uma forma de minimizar a dor e o sofrimento daqueles que lutaram e ainda tem que lutar contra esse sistema.
Essa ideia de hierarquização das raças vem dos séculos XVI e XVII, pela expansão marítima e colonização do continente americano. Os europeus, por terem “descoberto” um “novo mundo”, se acharam superiores às pessoas que já se encontravam aqui, e dominaram a terra por meio do genocídio dos povos nativos (indígenas) e a escravização sistêmica de povos africanos. Essa “descoberta” gerou essa sensação de superioridade e um movimento de tentar justificar essas relações de poder que foram estabelecidas por meio de violência, genocídio e sofrimento.
E esse sentimento de “superioridade” vem sendo passado de geração em geração, onde as pessoas de pele clara se acham mais inteligentes e capazes, enquanto negros e indígenas são vistos como “animais”.
No século XIX, teorias e estudos racistas surgiram para tentar comprovar essa ideia da superioridade da raça branca pura em detrimento das demais, com relação à inteligência e capacidade. Arthur de Gobineau (1816 – 1882) foi um filósofo, diplomata e escritor francês e um dos que mais se destacaram nessa busca, com o Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas. No mesmo século, um estudo foi baseado na fisiologia e na psicologia, chamado craniometria ou craniologia, onde eram tiradas as medidas dos crânios para uma comparação, buscando uma relação com a propensão à violência e inteligência. Movimentos separatistas como o nazismo e o Klu Klux Klan, utilizaram desse estudo para justificar a sua ideia de supremacia. Contudo, hoje em dia, não existe nenhum embasamento teórico e científico que comprove essas ideias e teorias racistas do século passado.
O Brasil foi o último grande país a abolir a escravidão, que só aconteceu após a promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Foram 300 anos de escravidão de povos de origem africana, o que é a principal causa do racismo no país. Mesmo que tenha sido um ponto positivo, a abolição foi feita de forma irresponsável, pois, como em outros países, não se preocupou em lidar com as consequências dela, como a criação de um sistema de políticas públicas que minimizasse o efeito da escravidão. Direitos como moradia, saúde, alimentação, estudo e inserção no mercado de trabalho para escravos libertos e seus descentes, tornariam suas oportunidades iguais aos dos brancos. Mas, como não foi assim, resultou em um sistema de marginalização que perdura até hoje. Daí vem o racismo que é tão estrutural na nossa sociedade.
A lei de cotas foi criada como uma forma de corrigir esse erro cometido pela Lei Áurea, o que, finalmente, trouxe bons resultados. Pela primeira vez, o índice de negros no ensino superior é maior que o de brancos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado nessa quarta-feira (13).
Consequências da escravidão
Com a liberdade em mãos, mas sem ter onde morar, os escravos recém-libertos foram habitar os locais onde ninguém queria morar, como os morros, na costa da Região Sudeste, o que formou as conhecidas favelas. Sem emprego, sem moradia digna, e sem condições básicas, os negros entraram em uma situação de miséria que resultou em violência entre a população negra e marginalizada, desde o fim do século XIX.
Como o racismo não está ligado apenas a questão do negro, os indígenas também foram marginalizados e sofreram com a colonização, por meio de invasões de suas terras e desmembramento de suas aldeias, que continuam acontecendo até hoje. Com isso, a população indígena passou pelo processo de exclusão racial, em que, literalmente, se encontraram e se encontram excluídas da sociedade.
Dicas de filmes
Trouxe aqui alguns filmes, de diferentes assuntos, gêneros e percepções, que podem ajudar a entender melhor esse processo de escravidão, racismo e luta por direitos.
Pantera Negra
O primeiro filme solo deste herói da Marvel traz uma ode ao protagonismo negro nas telonas. Na história, T’Challa (Chadwick Boseman), retorna ao reino de Wakanda após a morte do pai para participar da cerimônia de coroação. O longa faz menções claras sobre a evolução tecnológica dos países africano, além de trazer um ponto de vista crítico sobre a relação entre pessoas negras de origens distintas.
Corra!
O thriller gira em torno de um casal interracial formado por Chris (Daniel Kaluuya), um jovem negro, e Rose (Allison Williams), uma garota branca de família tradicional. Os dois aproveitam um final de semana para viajar ao interior para que o sujeito seja apresentado à família dela. Chris tem que lidar com uma série de situações tensas envolvendo as pessoas que conhece nessa experiência, em uma temática que debate com força a questão de racismo velado que sempre passa despercebido na sociedade.
Moonlight
Concentrado na trajetória de Chiron, o filme ganhador de três Oscar em 2017, trata, entre diversas questões, sobre a busca identitária e de autoconhecimento por parte de um homem negro que sofre com bullying desde pequeno e tem proximidade com questões de vulnerabilidade social, como tráfico, pobreza e rotina violenta.
Django
O filme de Tarantino conta a história de Django (Jamie Foxx), um negro escravizado que é libertado pelo Dr. King Schultz (Christoph Waltz), um assassino de aluguel. Junto dele, Django foi em busca de sua esposa, que foi separada dele em uma das casas onde os dois foram escravizados. Nessa jornada, o herói enfrenta uma série de situações racistas que aconteciam nos Estados Unidos na época, com referência a casos que ocorrem até os dias de hoje.
12 Anos de Escravidão
Um dos mais difíceis filmes de se assistir sobre esse período, 12 Anos de Escravidão mostra a vida de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), um negro liberto que vive com a família no norte dos EUA e trabalho como músico. Só que ele acaba sendo vítima de um golpe que o faz ser levado para o sul do país e como escravizado, onde passa a sofrer cenas trágicas e difíceis de digerir.