Tiradentes: o Homem, o Mártir e a Lenda

Por João Paulo Silva
Tiradentes: o Homem, o Mártir e a Lenda

Entre as ladeiras de pedra e igrejas barrocas de Ouro Preto, então Vila Rica, ecoam os vestígios de um dos mais audaciosos, porém frustrados, projetos de libertação do Brasil colonial: a Inconfidência Mineira. Articulado no fim do século XVIII por elites locais, o movimento, influenciado pelo Iluminismo e pela crise do ouro, desafiou a Coroa Portuguesa e terminou em tragédia, com a execução de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, hoje símbolo nacional da resistência.

No auge do ciclo do ouro, Minas Gerais era o coração financeiro do império ultramarino português. Mas, à medida que as minas secavam, a cobrança de impostos tornava-se insustentável. A gota d’água foi a derrama, mecanismo que autorizava o confisco de bens da população para saldar dívidas fiscais. Como explica o historiador José Martino, “os homens mais abastados entraram em desespero, pois sabiam que teriam parte de suas fortunas confiscadas. Por sua vez, os pobres também receavam a derrama, pois o imposto incidia sobre toda a população” (Martino, A Inconfidência Mineira e a Vida Cotidiana nas Minas do Século XVIII, 2019).

Inspirados pela independência dos Estados Unidos (1776) e pelas ideias de Rousseau e Montesquieu, os inconfidentes idealizavam uma república com capital em São João del-Rei, bandeira com o lema “Libertas Quae Sera Tamen” (“Liberdade ainda que tardia”), e até a criação de uma universidade. O projeto, porém, foi traído antes de virar ação concreta. “Delações premiadas” — como a do coronel Joaquim Silvério dos Reis, endividado com a Coroa — levaram à prisão de 34 envolvidos, conforme registros do julgamento disponíveis no Arquivo Nacional.

Enquanto figuras como o poeta Tomás Antônio Gonzaga foram condenadas ao degredo, Tiradentes, de origem modesta e sem ligações aristocráticas, carregou sozinho o fardo da culpa. Segundo o antropólogo e historiador brasileiro Luiz Mott, “Tiradentes encarnava o mártir necessário. Sua posição social baixa, aliada à forte religiosidade popular que o associava a um Cristo cívico, fizeram dele o bode expiatório ideal” (Mott, Tiradentes e o Mito da Liberdade, 2003). O historiador francês René Girard, citado em análise de Lúcia Garcia, reforça: “o bode expiatório é capaz de redimir o grupo ao absorver simbolicamente os dilemas coletivos” (Garcia, Confluências, Revista da UFF, 2019).

A execução de Tiradentes, realizada em 21 de abril de 1792, no Rio de Janeiro, foi cuidadosamente planejada para causar impacto. Seu corpo foi esquartejado e partes expostas em locais públicos em Minas Gerais. A mensagem era clara: desafiar Portugal seria sinônimo de morte. No entanto, seu sacrifício contribuiu para fertilizar o solo de futuras insurreições, como a própria Independência do Brasil, proclamada três décadas depois.

Hoje, Ouro Preto, reconhecida como Patrimônio Mundial da UNESCO, preserva viva a memória do levante. No Museu da Inconfidência, instalado na antiga Casa de Câmara e Cadeia, repousam os restos mortais de diversos inconfidentes e a forca simbólica que remete ao martírio de Tiradentes. A cidade em si funciona como um museu a céu aberto: a história não está apenas documentada nos arquivos, mas também gravada nas ruas de pedra, nas fachadas das igrejas e no silêncio das antigas celas coloniais.

Embora restrita às elites da época, a Inconfidência Mineira foi ressignificada pela República como símbolo inaugural da nacionalidade brasileira. A transformação de Tiradentes em herói nacional foi uma construção deliberada da República nascente, que buscava criar referências simbólicas para consolidar sua legitimidade. Como analisa o historiador Carlos Roberto Ballarotti, “a construção republicana do mito de Tiradentes […] justifica e consolida o poder vigente” (BALLAROTTI, 2009).

Se a república sonhada pelos inconfidentes fracassou, sua utopia permanece viva — não no ouro das minas exauridas, mas na luta por autonomia que ainda molda o Brasil contemporâneo.

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