Lançada na década de 83, “Anunciação” de Alceu Valença é uma canção que ultrapassou gerações, chegando em 2023 novamente como um hit do carnaval. De Olinda a Florianópolis, pode-se ouvir o refrão “Tu vens, eu já escuto os teus sinais” em diversos blocos de rua, e nas festas privadas é unânime: a música não pode faltar no repertório das bandas. Faz parte da cultura brasileira ouvir músicas por ouvir, sem se preocupar com o significado, mas curiosos podem ter vontade de compreender melhor a canção do pernambucano, analisando a música detalhadamente, encontramos algumas narrativas capazes de explica-la, se é se pode explicar.
Cravar uma ideia fixa para uma música não é legal, pois normalmente uma canção “bate” em cada pessoa de uma maneira, levando em consideração a subjetividade. Por outro lado, muitas músicas foram criadas dentro de um contexto específico, é o caso de “Lanterna dos Afogados”, escrita por Herbert Viana, baseada na obra literária de Jorge Amado, “Jubiaba”. A história narra o drama das esposas de pescadores que esperavam o retorno de seus amados a noite inteira em um bar denominado Cais do Porto. Elas acendiam suas lanternas orientar os homens noite adentro.
Mas, “Lanterna dos Afogados” acabou sendo interpretada por muitas pessoas como um sucesso que fala sobre saúde mental, momentos de desespero, ect e tal. O que não deixa de ser! Completamente diferente de “Anunciação”, de sonoridade nordestina e letra lúdica, que pode remeter à espiritualidade ou ao romantismo.
O que quer dizer a canção “Anunciação” de Alceu Valença?
“Na bruma leve das paixões que vem de dentro“, existem palavras da língua portuguesa brasileira que tornam o nosso idioma muito rico, eu diria que bruma é uma delas. Com dois significados principais: mistério e cerração (alva). A primeira frase da música já mostra sua ambivalência, mistério para as questões espirituais (porque não dizer também românticas?) e cerração para questões do coração (e porque não dizer celeste?).
“Tu vens chegando pra brincar no meu quintal“, quem estava chegando para brincar no espaço de Alceu? Um ser celeste, Deus? Ou um amor que estava invadindo o seu espaço (quintal) interno? Essa resposta teremos no decorrer dessa análise, ou não (risos).
Na medida em que o artista, com seu jeito único, dedilha os acordes compostos por notas extremamente nordestinas, ela vai se desdobrando e seus segredos sendo revelados e simmm! Existem combinações sonoras que podem remeter a regiões, estados e até mesmo cidades. Os de “Anunciação“, por exemplo, é um exemplo de canção capaz de transportar as pessoas para Olinda, em Pernambuco, se que precisem sair do lugar. Essa é uma das grandes magias da música.
“No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento“, opa, opa! Temos uma referência bíblica aqui? Estaria Alceu se referindo ao “cavaleiro do cavalo branco” de apocalipse, também compreendido como Jesus Cristo, que tem os “cabelos brancos como a neve”? Ou uma bela mulher cavalgando sem blusa com os cabelos ao vento (ou homem, talvez).
“E o Sol quarando nossas roupas no varal“, essa referência é regional, a palavra quarando era muito usada por mulheres que viviam nos sertões brasileiros, onde não chegava água, elas precisavam ir até as fontes para lavar roupa, fizesse frio ou calor. Nessas áreas mais afastadas, muitas vezes as mulheres retornavam para suas casas com as bacias na cabeça e deixavam as roupas (principalmente brancas) de molho com o sabão (de banha de porco), para quarar, que diferentemente do significado no dicionário, não era corar e sim tirar mancha ou mesmo clarear as peças brancas, sobretudo os lençóis.
Antigamente, a mulher era medida pelo capricho que tinha com os afazeres domésticos. Os uniformes das crianças precisavam ser bem branquinhos e mesmo indo lavar roupas nas fontes e algumas vezes precisar colocar os pés em águas muito geladas (porque iam antes de amanhecer o dia), elas não hesitavam em demonstrar o quão competentes eram com as questões do lar, ou não tinham outra opção.
“Tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais“, mais uma vez o cantor anuncia a chegada de alguém. Quem seria o motivo para tamanha “Anunciação”? Prossigamos…
“A voz de uma anjo sussurrou no meu ouvido, e eu não duvido já escuto os teus sinais“, mais uma vez uma referência religiosa e apocalíptica, pois no último livro da Bíblia Sagrada está escrito sobre o soar das trombetas dos anjos que anunciarão a vinda de Jesus Cristo à Terra a fim de destruir o mal e trazer justiça e paz eternas. Portanto “a voz do anjo” pode ser entendida como o momento que antevém o apocalipse. Oooouu, o anjo é apenas uma linguagem lúdica que Alceu usou para se referir ao anúncio da chegada de alguém muito importante, como se a voz do anjo fosse representada pelo som de alguns passos da pessoa chegando, mas ela ainda não esta sendo vista, ou pelo cheiro específico de uma pessoa, que chega antes que ela se apresente ao local.
“Que tu virias numa manhã de domingo, eu te anuncio nos sinos das catedrais“, pronto! Não é um amor terreno, realmente parece se tratar de algo religioso e para além, ligado á igreja católica, pois catedrais, aqui no ocidente, normalmente são igrejas cristãs, onde o principal dia de culto é o domingo, que anuncia frequentemente a volta de Jesus Cristo.
E os sinos? Os sinos também é uma referência do catolicismo, pois ele badala sempre que a igreja que anunciar o início ou o final de uma missa, quando há alguma celebração, como a Páscoa e o Natal, quando alguém morre, ou seja, o sito da igreja toca para anunciar algo importante, neste caso, o retorno de Jesus ao plano terrestre.
Mas, como diz Caetano Veloso, “ou não”. A referência da igreja pode ser referir também aos laços matrimoniais, o anúncio de que a noiva, vestida de branco, vai entrar na igreja para se casar, e por isso o sino toca. Tamanha “Anunciação” na verdade seria para o noivo que está aflito no altar a espera da sua amada, que virá vestida de bruma, de branco, como a névoa.
Ficamos com essas duas análises. E você, qual interpretação daria para a canção “Anunciação”, de Alceu Valença?
Anunciação de todos os jeitos!
Como muita gente sabe, Alceu Valença é um colecionador de sucessos. O seu jeito singular de transpor a vida em canção fez dele um dos grandes pilares da música popular brasileira e ícone do carnaval de Olinda, o maior do mundo. A música que recebe arranjos musicais de extremo bom gosto, desde o solo do início, passando pela pegada rítmica de um baião diferente fraseado com acentuações estratégicas, melodia e letra marcantes, nivelou a música nordestina, já muito rica, para outro patamar. Alceu é um divisor de águas em termos de música nordestina, existe a música antes de Alceu e depois de Alceu. É muito raro que um artista consiga modernizar estilos musicais já existente de maneira competente e popular ao mesmo tempo e a maestria com que “Anunciação” foi produzida, prova que o artista merece tal perpetuação não apenas dessa joia da música brasileira como outras contribuições musicais.
Vaja quem regravou a canção e deu novas roupagens:
- Saulo – axé
- Melim – pop
- Maneva – reggae
- Mariana Nolasco – voz e violão
- Vitor e Leo – sertanejo
- Pedro Paulo e Mateus – forró (sertanejo universitário)
- Samba Delas – samba
- Rádio mania – pagode
- Orquestra Ouro Preto – orquestrado (junto com Alceu Valença)
Ainda que a interpretação original seja insuperável, tem a atemporal “Anunciação” de todo jeito no Brasil e você, já escolheu o seu jeitinho de ouvir esse sucesso?
Carreira de Alceu Valença
Alceu Paiva Valença, o nosso Alceu Valença, nasceu em São bento do Una, cidade do agreste pernambucano, no dia 1º de julho de 1946. Desde criança recebeu influencias musicais tradicionais de sua região. Acompanhava manifestações culturais embaladas por ritmos como maracatus e repentes de viola.
Acompanhando os acontecimentos nas feiras de sua cidade natal, foi criando formando sua estética musical. Ouvindo sempre artistas como Jackson do Pandeiro, e Marinêz. Recebeu também informações musicais do seu avô, Orestes Alves Valença, poeta e violeiro.
Ainda criança, com 10 anos de idade, Alceu foi para Recife, onde teve contato com a cultura urbana, ouvindo Orlando Silva e Dalva de Oliveira. Ele também gostava muito de ouvir o rei do blues Ray Charles.
Mais tarde, em 1969, Alceu que tinha acabado de se formar no curso de Direito e também desenvolvia alguns trabalhos como jornalista decide abandonar tudo e se dedicar exclusivamente a musica. Ele contava com o apoio de seu amigo Geraldo Azevedo para participar de festivais de música.
Em 1980, com 34 anos Alceu lançou o LP “Coração Bobo”, que recebeu a música de mesmo nome que tocou nas rádios de todo o país. Na década de 96 a música nordestina volta a se destacar no cenário nacional. Ao lado de Zé Ramalho, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo, Alceu Valença viaja o país com a série de shows “O Grande Encontro”.
Com 31 álbuns gravados em estúdio, 11 ao vivo e 12 coletâneas lançadas, Alceu se consolidou como um dos maiores artistas de todos os tempos da música brasileira, carregando um legado que certamente será perpetuado. Que tal ouvir “Anunciação” com Alceu e Orquestra Ouro Preto?