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O suor e a vida dos negros na construção do Patrimônio Histórico de Ouro Preto

17/06/2020 às 18:35
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15 min
Foto: Mais Minas
Foto: Mais Minas

Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que marcou o fim da escravidão no Brasil. Não houve uma guerra civil, como nos EUA, e nem uma revolução de escravizados, como em 1790 no Haiti. No entanto, ainda existe a crença de que a escravidão no Brasil era mais humana do que em qualquer outro lugar. As imagens e relatos da época, que raramente retratavam a realidade cruel, contribuíram para isso.

No Brasil, a escravidão foi responsável pela escravização de milhões de africanos e existiu por cerca de 350 anos. Pela metade do século XVI, os portugueses começaram a trazer negros escravizados africanos para o Brasil para trabalhar nas plantações de fazendas, mineração, construções, etc. Se eles se recusassem a trabalhar, eram castigados com surras de chicotes, torturas com instrumentos de ferro, entre outros. Muitos desses seres humanos escravizados conseguiam fugir para esconderijos no meio do mato. Esses esconderijos eram chamados de quilombos.

A libertação deles em maio de 1888 não foi um festival de alegria, mas uma catástrofe econômica. Sem um pedaço de terra, um centavo de capital inicial ou qualquer tipo de educação, eles foram entregues ao seu destino, o que se reflete até os dias atuais. O legado da escravidão ainda persiste hoje. A figura do colonizador dominante se mantém viva. Os fantasmas da escravidão ainda vagam pelo país. Muitas igrejas, por exemplo, foram erguidas com mão de obra escrava.

Ouro Preto é uma cidade de Minas Gerais muito cobiçada, no que diz respeito ao turismo, devido às suas riquezas culturais. Contudo, muitos turistas que a visitam, e até mesmo parte dos moradores do pacato município, não imaginam quantas histórias há por trás dos monumentos arquitetônicos, quantas vidas negras se perderam e o legado que a escravidão deixou na cidade.

A reportagem do portal Mais Minas fez uma viagem no tempo entrevistando o historiador Alex Bohrer, que deu detalhes históricos sobre a escravidão, e também ouvindo ativistas do movimento negro que relataram histórias de lutas e preconceitos ainda vividos na cidade.

Para o engenheiro civil, ativista do movimento negro e proprietário da Mina Du Veloso, Eduardo Evangelista, mais conhecido como Du, há uma parte importantíssima sobre a história de Ouro Preto que é ocultada, que é a história de quem realmente construiu a cidade. 

“A gente conta a história das pessoas que construíram a cidade, como diz o lema da Escola de Minas, ‘Cum mente et malleo’, com a mente e um martelo. Quem estava segurando esse martelo pra fazer todo o trabalho de mineração e de construção da cidade era o povo africano, eram os nossos ancestrais, então por isso que quando a gente fala que vai contar a verdadeira história, a gente vai contar a história de quem construiu a cidade. E a história que nos é contada oficialmente, ela deixa invisibilizada toda a participação dos povos negros, então quando a gente fala ‘verdadeira história’, é porque a gente está colocando essas pessoas num patamar de dignidade que elas merecem, por terem sido elas quem construíram a nossa cidade.

Aqui, na Mina Du Veloso, a gente gosta de tirar essa história da invisibilidade, por isso que a gente fala ‘a verdadeira história’, que é a história de quem constrói o nosso município. Quando foi feito o trabalho de “patrimonialização” dele, quem escreveu a história foi somente uma parcela da população, a elite que não estava com a ferramenta na mão. Sempre a narrativa é contada das pessoas que não estavam efetivamente realizando as coisas, pessoas que não estavam construindo de fato. Então a história verdadeira que a gente acha é a história das pessoas que construíram, os trabalhadores e as trabalhadoras africanas, que trouxeram conhecimento e todas as técnicas de extração de ouro e de construção dessa cidade e de todo o nosso município. Então, essa que é a verdadeira história, a história contada por quem fez e não por quem mandou fazer, vamos dizer assim.

Quando os modernistas estiveram aqui na cidade, devido a visão de mundo deles, maioria da elite paulista, a maioria de classe alta, eles não reconheceram o valor e o legado do povo negro aqui na nossa cidade. Essa história se mantém por quase 100 anos, essa que os modernistas escreveram sobre a cidade, e a gente quer recontar essa história. Em 2024, faz cem anos dessa vinda desses modernista pra cá, pra poder reconhecer a cidade, então a gente acha que é o momento de contar a história também por esse outro ponto de vista, da população preta, que mora aqui na cidade, e que tem descendência desses construtores e construtoras que fizeram toda a nossa cidade. Fizeram no sentido de estar com a ferramenta nas mãos mesmo, construindo bloco por bloco, escavando as minas, extraindo ouro, fazendo todos os trabalhos que permitiram a criação da grande Vila Rica e a atual Ouro Preto.”

Conversamos também com Jefferson dos Santos, técnico em Metalurgia e proprietário da Mina Santa Rita de Ouro Preto. Para ele, as histórias são passadas de geração em geração, e que, apesar de não possuírem registro, elas agregam valor.  Jefferson é tataraneto de pessoas escravizadas. Ele relatou como se dava o processo de extração de minério realizado pelos negros na região. “A gente fica a imaginar como era a vida das pessoas que trabalhavam em torno de 14h a 16h por dia”.

Ouça entrevista com Jefferson dos Santos:

Jefferson inicia a entrevista dando detalhes de como era a dinâmica do trabalho escravo para a extração de minério.

“Cada um exercia uma função para que as metas fossem alcançadas, e o sofrimento dessas pessoas, a gente fica pensando naqueles negros fortes, com seus braços sarados de tanto trabalhar, batendo seus ponteiros, seus picões, outros esperando os minérios para serem transportados em mochilas feitas de couro de boi, mas muitas vezes até eram crianças, meninos que, ao chegar do lado de fora, faziam a separação do vil metal pra gerar riquezas, riquezas imensuráveis, que a gente não tem nem condições de imaginar quanto ouro gerou essas mais de três mil minas existentes aqui na região. Levando em consideração que justamente dessa propriedade aqui (mina Santa Rita de Ouro Preto), havia cinco minas e uma enorme casa grande com senzala, não era bom ter nascido negro nessa época de grande sofrimento pras pessoas.
Uma coisa que a história não fala é sobre o sofrimento das mulheres. Muitas mulheres a rodar suas bateias, como naquela velha cantiga “roda bateia, na bateia fica ouro, o que cai não é tesouro, deixa a água então levar”. Mas, imagine nessa época do ano em que faz muito frio durante todo o tempo, o dia inteiro com os pés junto a água pra fazer a separação do ouro. Elas não podiam errar de forma alguma, pois se errassem a produção seria pouco, e pouca produção representava pouca comida.

Hoje, as mães que trabalham nas empresas, elas tem que gerar suas metas. Não pode ter perda, não pode desperdício, se não a produção cai e se perde o emprego, e naqueles tempos eram castigos, que a gente nem pode pensar no que essas pessoas sofriam.

Quem foi o maior libertador não foi Chico Rei, não foi ninguém. Foram as mães que viam os seus filhos nascer, viver e morrer escravizados em uma das minas das diversas minas das gerais. Era sofrimento o tempo todo. Mas tentavam perseguir o ouro pra conseguir produção, pra ter um pouco de alegria, que era um pouco mais de comida, ou um pano melhor pra cobrir seu corpo ou até mesmo quem sabe conseguir a liberdade de um de seus filhos. Roubar ouro? Roubar ouro nunca, o castigo era muito ruim, era muito árduo, perde o cabelo, ter suas orelhas furadas, as unhas retiradas, não era bom roubar ouro, era melhor trabalhar e se entregar, pensar que um dia tal sofrimento iria se acabar.

Não era uma vida, era um filme de terror.

Eu sou tataraneto de uma pessoa que nasceu na Lei no Ventre Livre e que foi dada pra alguém como uma coisa qualquer, e dessa pessoa nasceu minha bisavó, nasceu minha avó, nasceu minha mãe e eu nasci também, e, nasceu minha filha, e todos nós conseguimos passar por degraus com relação a esse mundo que vivemos. Aprendemos a ler, a escrever, minha mãe sabia ler e escrever bem, 5º série, eu consegui fazer um curso técnico, minha filha conseguiu fazer um curso superior e meu neto tenho certeza que vai ser mais ainda, porém, vários degraus eles vão ter que passar ainda pra conseguir um lugar aos céus e mostrar que são competentes, para que no mercado de trabalho consigam disputar as vagas, as melhores posições, entrar em concurso público, ser bem classificado, mas isso vai depender da palavra chamada educação. Educação, consegue-se como? Lendo, lendo muito. Então o que o povo afrodescendente brasileiro tende fazer é ler muito pra aprender e conseguir um lugar aos céus. “

Refletir sobre essas histórias é refletir sobre presente e futuro, por mais que essas lembranças tenham deixados chagas na população negra, é importante lembrar que o racismo precisa ser combatido diariamente, até mesmo porque ele, ao longo da história foi se adaptando, se modificando, tomando novas formas, porém ainda não deixou de existir.  Apesar da persistência do racismo até os dias de hoje, pessoas tem alcançado sua formação acadêmica, é o caso do ouro-pretano Pedro Alexandre, mestre em Administração e estudante de Direito, também entrevistado pelo portal Mais Minas.

Confira a entrevista com Pedro Alexandre:

“Eu não consigo vislumbrar aqui no Brasil um negro que não tenha sofrido preconceito, seja tanto da forma espontânea, provocativa, ou até mesmo de forma cultural. Eu sou administrador de profissão, concursado na Universidade Federal de Ouro Preto, atualmente eu coordeno o núcleo gerencial de comunicação, eu tenho pós-graduação em Gestão Pública, também sou mestre em administração e atualmente estou cursando Direito e a gente observa que nem todos tem essa oportunidade de poder chegar em um grau de escolaridade assim que podemos dizer de certa forma que é considerável, porque se a gente pegar a nossa população brasileira a gente vai visualizar que apenas 10% tem curso superior.

Eu fui bancário por dois anos, em um dia desses de trabalho, eu estava atendendo do lado de fora, essa foi uma situação corriqueira que eu passei e visualizei um preconceito desvelado mesmo, um preconceito grosseiro. Observei que eu ia ao encontro de uma cliente pra atendê-la e automaticamente essa cliente ia se afastando de mim, ela foi até o segurança, vigilante, e falou com o vigilante ‘aquele rapaz ali estava em atitude suspeita’, só que o vigilante prontamente respondeu, ‘não senhora, ele é funcionário aqui no banco’, então assim, foi um preconceito ali, no linguajar de hoje ‘na cara dura’, que a mulher não teve nem o discernimento de perguntar quem eu era, o que eu fazia, ela simplesmente foi ao vigilante e falou que eu estava em atitude suspeita, será que se eu fosse um branco ela iria falar a mesma coisa? Então, essa foi uma das situações mais inusitadas que eu vivi por causa da cor da minha pele.

Agora, no que diz respeito à questão cultural, às vezes a gente está tão envolvido nessa situação de forma cultural que os próprios amigos também acham, brincam de forma preconceituosa até sem perceber.

Uma outra situação que eu lembro também é que numa roda de conversa com amigos, a gente tava comentando sobre emprego, eu falei que eu trabalhava no banco, então eles me perguntaram ‘você era segurança lá?’.

Eu vejo essa pergunta, não como uma pergunta maldosa, mas é de um preconceito cultural. Por quê? Porque eu não poderia ter outra atribuição? Então, dentro desse contexto foram as duas situações que a gente viveu que chamou a atenção.”

O escritor e doutor em História Alex Bohrer cita que Ouro Preto teve, no período de grande exploração minerária, uma população de maioria negra, devido à demanda de muita mão de obra escravizada.

Ouça a entrevista com Alex Bohrer:

“Os dados históricos comprovam a escravidão em larga escala, em todo o Brasil colonial, isso nunca foi debatido e é conhecido. A quantidade de africanos vindos pro Brasil no período colonial e em grande parte do período do império é imensa, assim de milhões de pessoas. Ouro Preto não era diferente. É uma cidade mineradora, então precisava de muita mão de obra escrava. Dentro dos parâmetros daquela época a gente não tem um número certo de negros escravizados que viviam em Ouro Preto nessa época porque as cifras variam muito, mas certamente era um número, contando os escravizados e negros libertos, era um número que excedia a população branca, ou de origem paulista, ou de origem portuguesa, ou mesmo de origem nordestina que habitavam Ouro Preto”.

O historiador continua:

“Todas essas construções que a gente vê, igrejas e as minas, foram construídas com mão de obra escrava, ou então até com mão de obra livre, mas quase toda era ligada a mão de obra de origem africana, mesmo que livre.
O trabalho nas minas era um trabalho duríssimo. A gente tem vários estudos que falam sobre a expectativa de vida dos trabalhadores escravizados nas minas, que era muito pior do que os escravizados urbanos, por exemplo. A gente tem que imaginar que é uma cidade no século XVIII, nessa região nossa, muito urbanizada, então a gente tem negros escravizados de todas as matrizes, desde aqueles que trabalham nas minas que tem condições piores, aos domésticos, de ganho, que são as pessoas escravizadas que podem sair nas ruas e oferecer serviços, ou vender produtos, isso é bastante comum no século XVIII. Então a gente tem que imaginar que a escravidão é muito complexa, essa escravidão que a gente vê em Minas Gerais no século XVIII é muito complexa e se enche de muito mais variantes do que a escravidão nordestina, por exemplo. Grande parte da escravidão nordestina é ligada às fazendas, fazenda de açúcar principalmente. A nossa já é diferente, a nossa escravidão muito mais urbana e que vai desde o trabalho doméstico até o trabalho nas minas, duríssimo”.

Alex elucida mais sobre o tema:

“Agora, o que acontece com as três leis, a Lei dos Sexagenários, a Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea, é que não foi prevista nenhuma compensação para aqueles que deixaram de ser escravizados, o senhor não pagou nenhuma multa, nenhuma verba indenizatória, não foi feita uma reforma agrária. Esses negros, no caso das áreas rurais, acabaram ficando sem terra pra cultivar. No caso de São Paulo, Rio de Janeiro e grande parte de Minas Gerais, a mão de obra deles acabou sendo suplantada por uma mão de obra imigrante, que estava chegando em grande quantidade, no caso de Minas Gerais, imigrantes da Itália, e isso acarretou vários problemas sociais. Eles vão acabar ocupando lugares de periferia, nos morros,. No caso das fazendas, muitos deles vão continuar escravizados, mesmo depois da Lei Áurea ter sido promulgada, eles continuam trabalhando em situação análoga à escravidão, coisa que muitas vezes continua infelizmente acontecendo até os dias de hoje.

Então, o fim da escravidão é uma coisa muito recente, nós temos, sentimos o impacto disso até os dias de hoje, basta a gente vê essa mobilização mundial em torno dos problemas. Começa especificamente no caso dos negros nos Estados Unidos e acaba se espalhando pelo resto do mundo, e isso chega e tem que chegar na nossa região, porque é uma região onde há uma herança africana muito grande e há uma dívida muito grande também com esses africanos e com esses descendentes de africanos.

Nós temos, por exemplo, em Ouro Preto, pelo menos três áreas de quilombos. São quilombos mesmo, reais, a gente sabe que eles existem desde o século XVIII. Não há nenhum trabalho até hoje feito de catalogação, de inventário, ou de preservação desses quilombos, a não ser por iniciativas esporádicas, mas nenhum programa pra preservação dessa cultura, ou para ajuda dessas comunidades, que são, antes de tudo, comunidades de resistência. São quilombos em pleno século XXI”.

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Última atualização em 28/08/2021 às 17:15