Dias atrás, lendo o livro Minha Formação, no qual o grande estadista do Império Joaquim Nabuco fala sobre suas influências intelectuais e de vida, um personagem me chamou a atenção: o barão de Tautphoeus. Ao contrário dos homens vulgares, na melhor acepção do termo, que muitos de nós somos, há uma classe de pessoas muito diversa: a daquelas que são interessantes não por uma obra produzida, mas por aquilo que foram – ou seja, pessoas cuja obra é a própria vida. Sem dúvidas o barão de Tautphoeus é alguém dessa classe.
Vendo o rico retrato que Joaquim Nabuco faz do antigo amigo e mestre, é possível ter uma imagem clara sobre o que é uma “personalidade científica” – o sujeito que não busca o conhecimento somente por um motivo pragmático, mas que estuda por amor à verdade, e que faz desse amor o centro da própria biografia. Assim Nabuco se referiu ao antigo mestre: “Era um homem que sabia de tudo. Sua conversação era inesgotável e raro ele mesmo a dirigia. O assunto lhe era indiferente, e até o fim, anos seguidos, dia após dia, nunca ele se encontrou senão com interlocutores curiosos de ouvi-lo sobre os pontos que mais lhe interessavam”.
Mas em que isso pode ajudar você que me lê e considera possuir dentro de si o gosto pela verdade e o desejo de conhecer? Talvez o velho barão possa exercer sobre você a mesma influência benéfica que exerceu sobre Joaquim Nabuco, talvez seja possível encontrar nele um modelo de homem de ciência que a nossa educação moderna nos tem insistentemente negado: o que busca desinteressadamente conhecer, o que se interessa por diversas áreas, o polímata e o que insere as especialidades de estudo dentro de um quadro geral e amplo – ou seja, o que cava em profundidade depois de ter se alargado o suficiente.
Nossa época tem se destacado pelos avanços científicos e tecnológicos, cada uma das ciências adquiriu na modernidade uma densidade de conhecimentos que faz dela praticamente impenetrável a um sujeito não especialista. Isso leva o estudioso a cultivar um quadro de conhecimentos e uma personalidade em tudo oposta àquela do barão, um quadro de especialização extrema aliado a outro de ignorância extrema. Os estudiosos do passado eram em grande parte polímatas, ou seja, pessoas que cultivavam várias áreas de estudo, desde as ciências naturais até as humanidades. O estudioso moderno é antes de tudo um especialista, incapaz de abordar seu objeto de estudo sob um método diferente daquele cultivado pela sua ciência. Ele não é inteiramente culpado por isso, uma vez que o volume de conhecimentos que a humanidade vem acumulando não permite que alguém esteja a par dos avanços de diversas áreas de estudo: as matérias não muitas, porém pouca é a vida.
Entretanto, que nada disso sirva como desculpa para se evitar o estudo de outros temas, ainda que superficialmente. Esse esforço parece hercúleo, porém é necessário. Um intelecto exclusivamente restrito a uma especialidade é um intelecto tosco. A realidade exige ser interpretada por várias ciências, e ela não se importa em saber qual curso você fez na faculdade. Esse trabalho de sobrepor à primeira educação, a que recebemos na escola e cultivamos no ensino superior, outra mais robusta é bem descrita por Alphonse Gratry no seu livro Conselhos para a direção do espírito:
“Que estreita cultura é a da primeira educação! Sobreponha a essa educação uma outra educação, e depois uma outra, ainda. Rompa e governe seu espírito trabalhando-o mais uma vez em vários sentidos”
Esse trabalho, que pode parecer extenuante, é o verdadeiro meio de se ter uma “personalidade científica”, como a do barão de Tautphoeus, dada ao aprofundamento e a especialidade quando for o caso, mas também aberta à realidade e a todo conhecimento que ela suscita.