
A coletânea “Literaturas africanas: em perspectiva”, organizada por Vanessa Riambau Pinheiro e publicada pela Editora UFPB em 2025, reúne reflexões de estudiosos do grupo GeÁfricas e oferece ao leitor um mergulho plural nas expressões literárias contemporâneas de países africanos de língua portuguesa. Os textos, que variam entre ensaios teóricos, análises textuais e reflexões críticas, dão voz à complexidade da produção intelectual africana, em especial às questões de identidade, gênero e representação cultural.
Ao articular nomes como Mia Couto, Paulina Chiziane, Dina Salústio, Ondjaki e Fatou Diome, o volume mostra-se uma espécie de cartografia crítica do Sul, mapeando tensões entre tradição e modernidade, oralidade e escrita, invisibilidade e protagonismo. A literatura, aqui, cumpre a função de testemunha histórica e ato de resistência. “Liberdade adiada”, de Dina Salústio, por exemplo, não apenas apresenta a solidão feminina nas ilhas de Cabo Verde, mas evidencia o quanto a maternidade, a pobreza e a ausência de nome são formas simbólicas de apagamento.
Ao lado desse apagamento, há uma reinvenção radical da linguagem. No ensaio de abertura, Vanessa Pinheiro disseca a recepção controversa da obra de Mia Couto em Moçambique, especialmente após a publicação de “Vozes anoitecidas”. A crítica local recusou-lhe o “direito” de poetizar a miséria camponesa com lirismo e neologismos, como se a linguagem só pudesse servir à denúncia direta, sem espaço para a metáfora. A arte foi, então, acusada de “aburguesar” a dor popular. Mas a autora insiste: reinventar a linguagem é também descolonizar o idioma, não apenas pelo conteúdo, mas pelo gesto estético.

“Como é que esta língua vai transitando de proprietário, vai deixando de ser do outro para ser uma língua própria?”, indaga o próprio Mia Couto. Em vez de repetir a norma lusitana, sua escrita cria desvios, abre rachaduras, mistura a voz do poeta com a do povo e assume a responsabilidade de criar o “português moçambicano”. A resistência, aqui, é também gramatical.
A crítica ao universalismo eurocêntrico aparece em vários momentos da obra. Enquanto a academia brasileira ainda reproduz cânones estrangeiros, os textos reunidos neste livro enfatizam a necessidade de uma crítica decolonial. Judith Butler, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e Achille Mbembe estão entre os nomes que ajudam a pensar a subjetividade negra, mas a coletânea se alicerça sobretudo na prática literária africana, não apenas em suas reverberações teóricas.
Entre os momentos mais potentes do livro, destaca-se o ensaio sobre Terra sonâmbula, de Mia Couto, considerado divisor de águas na consolidação da prosa moçambicana contemporânea. Publicado inicialmente em Portugal, o romance foi mais bem recebido no exterior do que em seu país natal. A crítica doméstica o acusava de “exotizar” a realidade local para agradar o olhar estrangeiro. Mas como lembra Francisco Noa, o que se apresenta é uma “linguagem inconformada”, própria de quem repensa a ideia de nação após a decepção com os projetos de independência.
Esse desconforto é recorrente em várias abordagens do livro. Dina Salústio, por exemplo, fala de mulheres anônimas, cansadas, sem tempo para o heroísmo. Suas personagens não pedem redenção, apenas que sejam vistas. A invisibilidade é uma dor ainda maior do que a exclusão.
“Sou a pegada do passo por acontecer”, escreveu Mia Couto em um de seus poemas. O verso parece atravessar toda a coletânea: as literaturas africanas aqui apresentadas são pegadas em construção, passos fragmentados de uma memória coletiva, dolorosa, mas em movimento.
“Literaturas africanas: em perspectiva” não é um tratado estático. É um corpo vivo, que se desloca entre o ensaio, a crítica, a denúncia e a esperança. Seus textos nos lembram que a literatura não precisa ser salvadora, basta que seja verdadeira. E ela o é.
Você pode fazer o download gratuitamente da obra no site da Editora UFPB.

João Paulo Silva, nascido em Barueri/SP e bacharel em Letras pela Universidade Estácio de Sá, pós-graduado em Revisão de Texto e em Linguística e Análise do Discurso. Contato: joaopaulobarueri@outlook.com