O Brasil tem, oficialmente, um novo bem registrado como patrimônio cultural de natureza imaterial. Foi aprovado nesta terça-feira (17 de junho), por unanimidade, durante a 109ª reunião do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o registro do bem “Saberes do Rosário: Reinados, Congados e Congadas”. O reconhecimento, aguardado há 17 anos por lideranças, mestres e comunidades tradicionais, marca um momento histórico para a preservação das tradições afro-brasileiras.
A reunião, realizada em formato on-line, foi conduzida pelo presidente do Iphan, Leandro Grass, que celebrou a conquista como “um ato de reparação histórica e de justiça social”. Segundo ele, o reconhecimento fortalece a política pública de salvaguarda das expressões culturais afro-brasileiras.
“Depois de 17 anos de espera, teremos o registro desse bem representado por diversos grupos, mestres e mestras nos estados de Goiás, Minas Gerais e São Paulo, que representa nossa ancestralidade africana, mantendo vivas as tradições e nos conectando com nossas origens”, afirmou Grass.
Cultura viva de matriz africana
O novo bem registrado consiste em um conjunto de saberes e práticas culturais transmitidos por gerações, que envolvem devoção ao Rosário e manifestações como os reinados, congados, congadas, moçambiques, catopês, marujadas, caboclinhos e outras expressões. Essas tradições se manifestam em festas com canto, dança, rituais e cortejos que misturam religiosidade, identidade e resistência.
Na maior parte dos festejos, ocorrem alvoradas, levantamento de bandeiras, rezas, missas e, como ponto alto, a coroação de reis e rainhas do Congo ou do Rosário. As celebrações, geralmente vinculadas ao catolicismo popular e à devoção à Nossa Senhora do Rosário, remontam ao período colonial e carregam marcas da resistência negra às violências da escravidão e às práticas de exclusão social ao longo da história brasileira.
Uma construção coletiva
A relatoria do processo de registro foi conduzida por Alessandra Ribeiro Martins, historiadora, líder do Jongo Dito Ribeiro, de Campinas (SP), e conselheira do Iphan. Em sua fala durante a reunião, Alessandra destacou que os Saberes do Rosário são formas de ancestralidade vivas, que constroem laços comunitários e expressam “as habilidades dos povos negros para a resistência cultural e para a produção de identidades poderosas”.
Ela ainda ressaltou o caráter extraordinário do bem: “Trata-se de uma tradição que tem abrangência territorial, longevidade temporal e diversidade de formas expressivas em sua multiplicidade de detentores. Chegamos ao século XXI com transformações e ressignificações, mas com um núcleo fundamental: a ancestralidade africana.”
O reconhecimento contempla diversos grupos que atuam em contextos distintos, mas partilham uma mesma raiz cultural. Estão incluídas irmandades, guardas de congo, ternos, grupos de tamborzeiros, pifeiros, reinados e cortes coroadas — cada qual com suas cores, ritmos e modos de fazer, mas unidos pela devoção ao Rosário e pela memória ancestral.
Minas Gerais e o berço dos reinados
Minas Gerais é um dos estados com maior concentração de grupos de reinado e congado no país, com forte presença em cidades como Ouro Preto, Mariana, Congonhas, Sabará, São João del-Rei, Divinópolis e Uberaba. Essas manifestações integram o cotidiano de muitas comunidades e são, em muitos casos, o principal elo entre passado e presente da população afrodescendente.
Em Ouro Preto, por exemplo, o Reinado de Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário realiza cortejos históricos e mantém tradições há mais de dois séculos. Em Divinópolis, a tradicional Festa do Reinado ocorre anualmente no mês de agosto, movimentando centenas de pessoas entre guardas, músicos e devotos.
Próximos passos: plano de salvaguarda
Com o reconhecimento oficial, o Iphan se compromete agora com a elaboração de um plano de salvaguarda, com diretrizes para a preservação, fomento e valorização dos Saberes do Rosário. Segundo o presidente do Instituto, as estratégias serão construídas em diálogo com as comunidades detentoras, respeitando suas especificidades e modos de vida.
“Vamos revelar ao Brasil essa nossa ancestralidade. Precisamos proteger e promover essas expressões culturais que nos formam enquanto nação. Estamos priorizando patrimônios culturais afro-brasileiros e indígenas”, completou Leandro Grass.
Um patrimônio da resistência
A aprovação da proposta representa, segundo o próprio Iphan, um dos reconhecimentos mais importantes dos últimos anos no campo do patrimônio imaterial brasileiro. Com ele, o país amplia o número de bens registrados que têm origem nas populações afrodescendentes, ao lado do Jongo, do Tambor de Crioula, do Maracatu, do Ofício de Paneleiras de Goiabeiras, entre outros.
A inscrição dos Saberes do Rosário no Livro de Registro das Celebrações do Iphan fortalece a luta por visibilidade, respeito e valorização das expressões culturais negras e reafirma o papel das tradições populares como pilares fundamentais da identidade brasileira.