Primeiramente, vamos pensar na seguinte situação: você mora na zona rural, onde quase ninguém tem televisão. A internet é precária, isso quando ela chega até onde você mora. Cinema? Bom, você só ouviu falar. E ai você, com muita dificuldade, se inscreve no Enem para tentar uma universidade, estudar, se formar, conseguir um bom emprego, e melhorar sua condição de vida. Você se esforça o ano todo, estudando com o pouco material que tem, com a ajuda de professores que tentam, ao máximo, contribuir com o que conseguem, e quando chega no dia da prova, você abre o caderno e vê o tema da redação (que é uma das partes mais importantes do Enem): “Democratização do acesso ao cinema”. E você congela. O que você vai escrever? Você nunca esteve em um.
É completamente injusto e hipócrita um tema que fala de “democratização”, sendo que ele é tão centrado em uma bolha social. É sim importante falar sobre isso. É importante sim que o acesso ao cinema seja democratizado. Mas, seria a redação do Enem o melhor lugar para essa discussão? Já que coloca em jogo a realidade e as oportunidades de muita gente? O próprio Enem não deveria ser democrático?
Além disso, é preocupante perceber que estamos tão cegos dentro da nossa própria realidade, que muitas pessoas não tem levado em consideração a questão abordada aqui. É “engraçado” perceber o quanto somos privilegiados por ter acesso à internet, à informação, onde podemos discutir e conversar com o mundo. E, quando quisermos, assistir um filme ou ir ao cinema. Uma realidade tão distante para alguns.
Além disso, algumas pessoas pensam apenas que a democratização do cinema diz respeito ao preço dos ingressos, por exemplo. Mas, você sabia que quase 90% das cidades brasileiras não tem cinema? Em TODO o Brasil, existem apenas 3.189 salas. Como mostra o mapa abaixo, feito pela NEXO:
“Não seriam essas pessoas as melhores para falar sobre o problema?”
Esse questionamento é muito válido. Desde que a pessoa tenha uma mínima condição de falar sobre ele. Uma coisa é uma pessoa que mora numa cidade que possui cinema, que ela sabe sobre ele, já foi uma ou duas vezes, sabe que o preço é alto, sabe que é difícil chegar até lá, ou qualquer outro motivo que a impeça de conseguir usufruir dele.
A situação fica um pouco mais complicada, mas possível, quando, por exemplo, a pessoa não tem um cinema na sua cidade, porém, tem na cidade vizinha, onde, vez ou outra, consegue ir. Mas, é completamente diferente quando uma pessoa não sabe nem o que é cinema. O que é um filme. E, principalmente, não consegue entender o porquê ela não tem acesso a ele. Ou o porquê ter acesso a ele é importante, é bom, é necessário. Como discutir alguma coisa que é totalmente fora da sua realidade?
Como escrever, em 30 linhas, da forma que é exigida no Enem, com embasamentos teóricos, dados, referências, argumentações, propostas de intervenção, sendo que você nem conhece sobre o que estão pedindo pra você falar? Como uma pessoa do ‘interiorzão’ do Nordeste, da zona rural do Mato Grosso, vai conseguir competir com um candidato de São Paulo, onde tem um cinema em cada esquina, mesmo que os dois estejam disputando com cotas?
Não é a primeira vez
Desde o ano passado é possível perceber que o tema da redação não tem abordado assuntos em que “qualquer” pessoa consiga falar sobre. Em 2018, o tema foi “Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet”. Porém, nem todo mundo tem acesso à internet. Nem todo mundo tem condições de falar sobre. Segundo uma pesquisa feita pela TIC Domicílio em 2017, e divulgada em julho de 2018, cerca de 27 milhões de residências não tinham acesso a internet. Ou seja, 39%, mais de um terço da população. Outras 42,1 milhões acessam a rede via banda larga ou por dispositivos móveis. Nas casas de classes D e E, 70% delas não possui nenhum acesso à rede. Entende o problema? Claro que, ao longo do tempo, essa realidade vem mudando e mais pessoas conseguem ter acesso. Porém, ainda existem muitos lugares onde a internet não chega, onde as pessoas não tem condições de ter um computador ou um celular. Ainda não se pode dizer que toda e qualquer pessoa tem condições de discutir certos temas.
Meritocracia?
Não é de hoje que a meritocracia, ou seja, a igualdade de oportunidades, é discutida. Todo mundo realmente tem as mesmas oportunidades? Nesse caso, como citado acima, vemos que não. Como o exemplo dado, uma pessoa que mora em São Paulo, ou qualquer outra cidade com “fácil” acesso ao cinema, tem muito mais chance de ir bem na redação do que alguém do interior que não tem ideia do que o cinema seja. Enfim, meritocracia é um assunto complexo de ser abordado, mas sabemos que a desigualdade do acesso à educação vem desde a base. E agora, mais do que isso, o acesso ao ensino superior também fica cada vez mais segregacionista, constitucionalizado por meio da redação do Enem.
Precisamos perceber e entender que esses temas são excludentes. Que não é porque alguns de nós (ou a maioria) tem acesso a tais recursos, que todo mundo tem. Precisamos ser críticos. Precisamos entender nossos privilégios. Precisamos ver para além da nossa bolha.
Reforço que sim, é importante discutirmos isso, é importante defendermos um acesso democratizado à cultura e ao cinema. Precisamos lutar para que o cinema chegue aos lugares mais distantes do país. Precisamos lutar para que o ingresso tenha um valor acessível. Precisamos lutar para que as pessoas consigam ter consumir um filme em uma sala de cinema. Mas, precisamos entender, que como não é uma realidade de todos, muitos não poderão escrever uma redação sobre isso.