A Justiça do Trabalho de Minas condenou a Vale a pagar indenização por danos morais a duas enteadas de ex-empregado morto no acidente do trabalho causado pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Ao apreciar os recursos das partes, os julgadores da Quinta Turma do TRT-MG reduziram o valor da indenização por dano moral para R$ 230.484,00 (R$ 115.242,00 para cada uma das autoras).
Na ação, as autoras alegaram que sofreram danos morais em decorrência da morte do padrasto, o que foi acolhido pela juíza Sandra Maria Generoso Thomaz Leidecker, em sua atuação na 6ª Vara do Trabalho de Betim. Na motivação da juíza, ficou evidente a existência de danos morais, tendo em vista que a perda de um ente querido, no caso, o padrasto das autoras, com o qual foram provados os laços afetivos, gerou abalo imaterial indenizável, entendimento que se harmoniza com a jurisprudência do TRT mineiro. Segundo a magistrada, a atividade de mineração explorada pela Vale é de risco acentuado, o que autoriza a aplicação da responsabilidade objetiva (que não depende de prova de culpa), prevista no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil. Além disso, a juíza constatou que esse risco ainda foi elevado por uma conduta imprudente e negligente da empresa (artigo 186, do CC), configurando o dever de reparação dos danos causados.
“Um dos mais graves acidentes de trabalho da história” – Na sentença, a juíza fez algumas considerações sobre a tragédia em Brumadinho, que tirou a vida de centenas de pessoas, incluindo o padrasto das autoras. Conforme destacou, o rompimento da barragem de rejeitos da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG, é um dos mais graves acidentes de trabalho da história, que promoveu caos, destruição e morte, tragédia que consternou e abalou toda a nação.
Na decisão, a magistrada destacou a extensa degradação ambiental: “Os rejeitos de mineração atingiram o Rio Paraopeba, recurso natural que é importante fonte de subsistência para os moradores da região. Logo após a tragédia, a água do rio ficou turva e se tornou imprópria para consumo e atividades de recreação. O Paraopeba é um dos principais afluentes do São Francisco, o que projeta a contaminação para o Nordeste do país, com impactos ambientais ainda não totalmente mensurados, mas certamente expressivos”.
Como pontuou a juíza Sandra Maria Generoso, houve graves danos patrimoniais, que envolveram contaminação de terras agrícolas, destruição de casas e bens móveis diversos, muitos deles equipamentos indispensáveis ao trabalho dos moradores. “O acidente causou, ainda, danos extrapatrimoniais incomensuráveis, suportados, principalmente, pelos familiares dos falecidos e desaparecidos. Os fatos acima citados são notórios e foram amplamente noticiados pelos meios de comunicação”, frisou. Acrescentou que eventos dessa magnitude têm potencial de causar danos à imagem do Brasil no cenário internacional, não apenas na esfera ambiental, esta evidente, mas também na seara trabalhista, lembrando que o Brasil ratificou a Convenção 176 da Organização Internacional do Trabalho, que dispõe sobre a Segurança e Saúde nas Minas, e incorporou o texto ao ordenamento jurídico pátrio (Decreto nº 6.270/2007).
“Um quadro tão grave, que envolve os mais caros bens jurídicos tutelados pelo direito, exige, nos limites da lei, a rigorosa responsabilização, que, certamente, se dará nas searas cível, penal, ambiental, administrativa e, igualmente relevante, trabalhista”, alertou a magistrada.
Dano moral reflexo ou em ricochete – A Vale afirmou que as autoras, por não terem sido diretamente atingidas, não possuíam legitimidade para propor ação com pedido de indenização por danos morais pela morte do padrasto na tragédia. Mas isso foi afastado na sentença. Segundo explicou a juíza, a indenização pretendida pelas autoras decorre de dano moral reflexo ou em ricochete, tendo em vista que o acidente não as vitimou diretamente, mas refletiu negativamente em suas vidas.
Conforme pontuado, o acidente de trabalho, sobretudo desse vulto, tem potencial de gerar consequências que extrapolam a relação entre empregador e empregado, podendo atingir direitos de terceiros e ocasionar o dano moral em ricochete. “Assim, é cabível o ajuizamento da ação, em nome próprio, por pessoa que, em tese, tenha sofrido danos, de natureza material ou imaterial, decorrentes do acidente” concluiu a magistrada.
Inconstitucionalidade dos artigos 223-A e 223-G,
Conforme explicou a julgadora, o artigo 5º, inciso V, da Constituição assegura a indenização por dano moral ou à imagem em caso de violação aos direitos da personalidade. E, por se tratar de norma constitucional de eficácia plena, caracteriza-se justamente pela sua autoaplicabilidade,
De acordo com a magistrada, a “reforma trabalhista” (Lei nº 13.467/17), a pretexto de regulamentar o disposto no artigo 5º, inciso V, da Constituição, acrescentou à CLT os artigos 223-A, 223-G e seus parágrafos 1º e 2º, os quais pretenderam limitar a indenização por dano moral. Entretanto, na visão da juíza, as novas regras restringiram indevidamente o alcance da Constituição, tendo em vista que a norma constitucional, a qual tem eficácia plena e não pode ser limitada por norma infraconstitucional, exige a integral reparação do dano moral causado. “Tão evidente é a eficácia plena da norma constitucional (CF – artigo 5º, V) que inúmeras ações de reparação por dano moral foram e ainda são conhecidas na esfera cível e, antes da inovação legal em comento, na seara trabalhista, com aplicação direta da Constituição, o que demonstra a natureza restritiva e, portanto, inconstitucional do tabelamento do dano moral”, destacou.
Segundo o registrado na sentença, as regras da reforma, ao estabelecerem critérios restritivos para a fixação da indenização por dano moral, com base no salário do ofendido, afrontam claramente o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF), em verdadeira tarifação do ser humano e do seu sofrimento, com a completa subversão do princípio que afirma justamente que a pessoa humana não é passível de precificação, como se fosse bem de capital.
Além disso, a julgadora ressaltou que os dispositivos estabelecem um tratamento discriminatório dispensado aos trabalhadores em relação às demais pessoas, sem que a diferenciação tenha fundamento na função protetiva, inerente à Justiça do Trabalho, em nítido confronto com o objetivo fundamental da República que, visando à promoção do bem de todos, rejeita quaisquer formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV, da CF).
Dano moral – Responsabilidade objetiva da Vale – De acordo com a magistrada Sandra Maria Generoso, a mineração constitui atividade de risco especial ao trabalhador, já que envolve o uso de equipamentos pesados, explosivos, deposição de estéril, rejeitos e produtos, assim como inúmeros outros riscos ao trabalhador, conforme explicitado na Norma Regulamentadora nº 22 do antigo MTE. Nesse cenário, aplica-se ao caso o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, que estabelece a responsabilidade objetiva (independentemente de culpa) quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de terceiro. “Em tais casos, a culpa inerente à responsabilidade subjetiva dá lugar ao risco assumido pelo desempenho da atividade, que deve ser suportado, por óbvio, pela empregadora, que realiza o empreendimento potencialmente danoso e visa ao ganho econômico da operação – risco proveito”, frisou a juíza.
A conduta ilícita da Vale – Mas a juíza constatou ainda que a conduta da empresa elevou os riscos da tragédia. “A empresa construiu e manteve a unidade administrativa e o refeitório em plano inferior à barragem, logo nas proximidades, fato este notório, medidas claramente imprudentes, que expuseram os trabalhadores a situação de extrema vulnerabilidade, tendo em vista o resultado por todos conhecido”, destacou na sentença. De acordo com a julgadora, essa constatação desmorona a alegação da ré de que sempre cumpriu as normas de saúde e segurança do trabalho, tendo em vista que a Norma Regulamentadora nº 24, do antigo MTE, que estabelece condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho, dispõe que: “O refeitório deverá ser instalado em local apropriado, não se comunicando diretamente com os locais de trabalho, instalações sanitárias e locais insalubres ou perigosos”, o que foi nitidamente descumprido pela ré.
“A posição da unidade administrativa e do refeitório em relação à barragem, resultado de mau planejamento, evidenciava que, em caso de rompimento abrupto da estrutura, uma avalanche de lama atingiria, em questão de segundos, os trabalhadores que lá estivessem. A situação, portanto, era de tal gravidade que reclamava a adoção de medidas sérias, como a imediata interdição da área de risco e subsequente
De acordo com a julgadora, as circunstâncias apuradas revelam que a Vale tinha ciência das condições específicas de insegurança da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, como, inclusive, registrou decisão proferida, em 9/5/2019, no processo nº 5000218-63.2019.8.13.0090 (em tramitação na 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude da Comarca de Brumadinho), a qual se trata de documento público. Houve também evidências de ocorrência de pressão empresarial para que a empresa Tüv Süd Bureau de Projetos e Consultoria Ltda. emitisse relatórios de interesse da mineradora, atestando a segurança de suas barragens, apesar das constatações em sentido contrário. Revelou-se, ainda, que índice de segurança de liquefação, grandeza relacionada à estabilidade da estrutura, mostrava-se bem abaixo do padrão internacional recomendado, o que vinha ocorrendo desde novembro/2017 e se repetiu em junho/2018, conforme medição feita na época. De acordo com dados extraídos daquela decisão, a mineradora não atendeu à recomendação da consultoria especializada, no sentido de que deveriam ser instalados drenos horizontais profundos (DHPs) para elevar o fator de segurança de liquefação da barragem para os níveis recomendados.
Para a juíza Sandra Maria Generoso, as provas não deixaram dúvidas sobre a conduta negligente da Vale, que, plenamente ciente dos riscos existentes em suas instalações, não adotou medidas preventivas eficazes para evitar a ocorrência de nova tragédia.
Relação de proximidade entre enteadas e o padrasto – A ocorrência do dano moral, de acordo com a juíza, surge diante da convivência bastante próxima e duradoura das autoras com o trabalhador falecido, o que foi demonstrado pela prova testemunhal. Uma vizinha das autoras que frequentava a mesma igreja da família chegou a afirmar que o padrasto se referia às autoras como filhas, que, por sua vez, o chamavam de “pai de coração“. Documentos apresentados, inclusive fotografias, apontaram, no entender da magistrada, para a formação de um grupo familiar, demonstrando
“Dessa forma, evidencia-se a ocorrência do dano moral, tendo em vista que a perda de um ente querido, no caso o padrasto das autoras, com o qual já restaram demonstrados os laços afetivos, acarreta abalo imaterial indenizável, entendimento que se harmoniza com a jurisprudência do Regional”, destacou a julgadora.
Houve recurso e os julgadores da Quinta Turma do TRT-MG reduziram o valor da indenização por dano moral para R$ 230.484,00 (R$ 115.242,00 para cada uma das autoras).
Fonte: Secretaria de Comunicação Social/Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região