O cheiro doce que escapa pelas janelas e se mistura com o som da colher no tacho me parou no meio da rua. Era manhã em São Bartolomeu, e o dia começava como sempre: com frutas cortadas ao meio, fogão à lenha aceso e uma receita que nunca foi escrita. Era ali que eu entendia — esse lugar não se explica com mapa. Ele se prova.
O que ninguém me contou sobre São Bartolomeu
Falam de São Bartolomeu como um “distrito colonial”, um ponto de apoio para quem está de passagem por Ouro Preto. Dizem que é um lugarzinho tranquilo, com festa de padroeiro e um ou outro doceiro tradicional. Mas nada disso me preparou para a maneira como o tempo parece entornar ali, como o caldo ralo que ainda não virou geleia.
Não se trata de visitar igrejas ou tirar fotos de fachadas antigas. Trata-se de sentir que, mesmo que você quisesse apressar a visita, algo na atmosfera te impede. Uma chaleira assobiando, uma senhora que convida para entrar, um banco de pedra que sussurra: “fica mais um pouco”.
Dona Rita e o tacho que não tem pressa
“Tem dia que a goiaba não dá o ponto, aí a gente espera. Doce bom tem que ter paciência”, me disse Dona Rita, 67 anos, mexendo o tacho como quem embala um neto. A casa dela é do século passado — literalmente. Fica ao lado da igrejinha, com janelas verdes que rangem com o vento.
Ela me ofereceu um pedaço de goiabada sem dizer palavra. Eu aceitei como se fosse bênção. Na cozinha, um retrato antigo e um banquinho baixo dividiam o mesmo canto. Era tudo simples, mas carregado de uma complexidade que nenhuma receita escrita daria conta.
O doce dela não era só doce. Era denso de lembrança, de histórias e de um tempo que não cabe mais no relógio.
O passeio sem roteiro que me levou até ali
Saí andando sem destino. Passei por uma escola onde crianças corriam atrás de um pião de madeira. Cruzei uma ponte tão baixa que dava pra tocar a água com a mão. O rio ali não corre, ele caminha. Na sombra de um pé de jabuticaba, um senhor descascava marmelos com uma faca cega e uma paciência absurda.
“O turista gosta de perguntar o que tem pra ver. Eu gosto é do que tem pra sentir”, ele me disse, enquanto oferecia uma fruta cortada. Aceitei, de novo. Em São Bartolomeu, tudo é convite sem alarde.
Ao caminhar mais um pouco, notei que a sombra da Igreja Matriz parecia me guiar. Mas o verdadeiro segredo estava na porta lateral, quase sempre esquecida, que levava a um pátio com bancos gastos, onde uma senhora rezava baixinho de olhos fechados. Não fotografei. Só respirei.
Onde a tinta descascada também conta histórias
Reparei numa janela descascada, com marcas de unha. Dizem que era onde as crianças se penduravam pra ver os cortejos. Em outra esquina, um pé de laranja-da-terra crescia torto, entre duas pedras do calçamento. “Deixa ele aí. Já dava fruta antes de nascer meu neto”, me disse alguém.
Ali, o imperfeito é regra. E é isso que dá verdade ao lugar. A beleza mora naquilo que escapou da restauração. Nos detalhes que resistem. Naquilo que ninguém conta porque acha que não vale nota.
O que trouxe de lá (além dos doces)
Voltei com potes de goiabada e marmelada embrulhados em papel reciclado e carinho. Mas o que trouxe mesmo foi outra coisa. Um silêncio. Um suspiro. A ideia de que talvez a pressa seja o que estraga a receita da vida.
Em São Bartolomeu, não aprendi a fazer doce. Aprendi a respeitar o tempo das coisas. A colher só para de girar quando o ponto está certo. E a gente também.