Preconceito linguístico e elitismo: o Brasil de Odete Roitman ainda resiste?

Por João Paulo Silva
Preconceito linguístico e elitismo: o Brasil de Odete Roitman ainda resiste?

“Pode avisar que Odete Roitman está chegando.” A icônica vilã da novela Vale Tudo — agora em seu remake — começa a ser introduzida na trama a partir do capítulo deste sábado (26), também como parte das celebrações dos 60 anos da TV Globo. Na primeira versão, exibida em 1988, Odete Roitman foi eternizada pela interpretação de Beatriz Segall. Agora, é a vez de Debora Bloch dar vida à personagem.

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Sem cerimônia, Odete manda suas malas para a casa de sua irmã, Celina (interpretada nesta versão por Malu Galli), mas avisa, por telefone, que não pretende se hospedar ali. Logo de início, revela seu perfil elitista e preconceituoso ao dizer: “Ah, Celina, por favor, avisa na portaria do hotel que eu detesto ter brasileiros de outros estados passando na porta do meu apartamento falando português… essa gente viaja até com criança, às vezes. Quanto menos eu ouvir falar português, melhor!”

Essa fala inicial é apenas um prenúncio de uma sucessão de declarações carregadas de xenofobia interna, racismo e desprezo pela cultura nacional. Frases como “Essa terra não tem jeito! Esse povo não vai pra frente. As pessoas aqui não trabalham! Só se fala em crise nesse país. Um povo preguiçoso! Isso aqui é uma mistura de raças que não deu certo!” mostram não apenas o preconceito linguístico, mas também uma visão elitista e “estrangeirada” que ainda encontra ecos na sociedade brasileira atual.

O preconceito linguístico de Odete Roitman — sua aversão ao português popular falado pelos brasileiros comuns — é, na verdade, uma expressão de um tipo de elitismo que valoriza referências estrangeiras e despreza a identidade nacional. Essa elite caricaturada na personagem enxerga o Brasil e seu povo como inferiores, associando a língua, o comportamento e até mesmo a origem étnica a uma suposta “incapacidade” de progresso.

Quase quatro décadas depois da novela original, essas atitudes seguem presentes, explicitamente ou disfarçados, em diferentes setores da sociedade, onde o valor social é muitas vezes medido pela capacidade de emular culturas estrangeiras e rejeitar traços brasileiros.

A introdução de Odete na trama, aliás, é feita de forma estratégica para destacar seu poder intimidante. Tal como a personagem Miranda Priestly, vivida por Meryl Streep em O Diabo Veste Prada, Odete não precisa de ações explícitas para demonstrar sua força: sua simples chegada já altera o ambiente. Ela é a mulher temida, respeitada e, ao mesmo tempo, odiada. Só depois de instaurar essa atmosfera de medo e reverência é que ela começa, de fato, a executar suas maldades.

Interpretar novamente uma personagem tão marcada pela memória afetiva do público é um desafio considerável. Debora Bloch, com seu imenso e inquestionável talento, deve trazer para Odete um frescor contemporâneo sem apagar a essência cruel da vilã. Mas é importante ressaltar aqui que qualquer mudança na personagem será vista com atenção redobrada por quem guarda a lembrança vívida da atuação de Beatriz Segall.

É claro que Beatriz Segall e Debora Bloch são atrizes diferentes, com características diferentes, e isso será perceptível nas comparações entre as duas atuações. Parte do público vai encarar essa reinterpretação com entusiasmo, mas uma outra parte certamente vai adotar uma postura mais crítica, fazendo inevitáveis comparações entre as versões. Mas nada disso vai tirar o talento de Debora Bloch, muito menos da inesquecível Beatriz Segall.

Odete Roitman é maior que o tempo. Sua crítica ácida, suas frases impiedosas e sua visão distorcida do Brasil são reflexos de algo que foi muito forte décadas atrás e que ainda persiste em nosso meio — e talvez, neste novo momento histórico, sejam ainda mais necessárias.

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