Atingidos por barragens pedem que impactos das enchentes sejam incluídos na nova repactuação de Mariana e Brumadinho

Publicado: última atualização em 0 comment

Integrantes de movimentos sociais ligados ao atingidos por barragens, representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública pediram para que os impactos das enchentes deste ano sejam incluídos na repactuação do acordo de reparação de danos de Mariana e Brumadinho. O tema foi discutido na quinta-feira, 3 de fevereiro, em audiência na Câmara dos Deputados.

As enchentes de janeiro deste ano deixaram quase 40 mortos em todo o estado de Minas Gerais e também castigaram as bacias dos rios Doce e Paraopeba, que também foram impactadas pelos crimes socioambientais decorrentes do rompimento de barragens de rejeitos de minério em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em 2019.

Atingidos por barragens pedem que impactos das enchentes sejam incluídos na nova repactuação de Mariana e Brumadinho
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Pedro Aguiar, assessor do Instituto Guaicuy atua na questão socioambiental na região. Ele classificou a situação como “crime continuado”.

“Quando há uma situação dessa de rompimento, ela fica ainda mais complexa em situações como essas de grandes volumes de chuva. O rompimento é um crime continuado. O alagamento ao longo do rio danificou estruturas, poços artesianos, cisternas, currais. Então, o medo que as pessoas tinham agora está ainda maior”, afirmou.

Aguiar foi um dos quase 30 convidados da primeira audiência pública da Comissão Externa sobre Rompimento da Barragem do Fundão. O colegiado foi criado em dezembro para fiscalizar a repactuação do acordo de reparação dos vários danos causados pela tragédia de Mariana.

Porém, a experiência também poderá servir em uma eventual repactuação em acordos relativos à tragédia de Brumadinho, que registrou 272 mortos e devastação na bacia do rio Paraopeba.

A presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do Rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão (Avabrum), Alexandra Costa, contou o agravamento da situação de Brumadinho após as enchentes de janeiro.

“Nós vimos agora, nessa última enchente, que a lama que ficou no fundo do rio e não havia chegado a Brumadinho no dia 25 janeiro [de 2019] chegou agora à sede e a outras localidades. Junto com a lama normal do rio, havia muito rejeito. A população enfrentou muita dificuldade para limpar essa lama. E, para a gente da Avabrum, são três anos de muita dor e impunidade”, declarou.

Em geral, os atingidos pelas tragédias de Brumadinho e Mariana contaram que os rejeitos de minério de ferro deixaram os rios Doce, Paraopeba e alguns afluentes com leitos mais estreitos e menos profundos. O grave assoreamento permite a rápida disseminação de lama tóxica durante as enchentes, trazendo riscos de contaminação e de insegurança hídrica em áreas rurais e urbanas.

O Ministério Público Federal ajuizou a Vale a providenciar a realocação e o pagamento de auxílio emergencial para índios Pataxó inteiramente desalojados de suas aldeias pelos alagamentos de São Joaquim de Bicas.

Há várias ações pontuais em andamento em outras cidades, ainda decorrentes da falta de decisões finais da Justiça, como destacou o procurador da República em Minas Gerais, Carlos Bruno da Silva, integrante da açãol ambiental do Ministério Público para a bacia do Rio Doce.

“O ideal seria que a Justiça desse todos os direitos que a população merece, tanto na tragédia de Brumadinho quanto na tragédia de Mariana. Mas o fato é que, depois de seis anos e com enorme resistência das empresas, não conseguimos essa decisão judicial e fomos obrigados a buscar um meio termo que finalmente resolva a questão dessas populações”, explicou.

Repactuação

Atingidos por barragens pedem que impactos das enchentes sejam incluídos na nova repactuação de Mariana e Brumadinho
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O processo de repactuação envolvendo as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billington é intermediado pelo CNJ desde meados do ano passado, diante da insatisfação popular das ações da Fundação Renova, criada pelas três mineradoras para conduzir as reparações sociais, econômicas e ambientais.

Representante do CNJ na repactuação, o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello citou algumas premissas básicas. “No contexto da repactuação, seja qual for o valor que ao final se chegue, deverá ter uma parcela desse valor dirigida para a reinserção socioeconômica das pessoas, sob pena de se ter um acordo ilegítimo. Outro pressuposto dessa repactuação é que a Renova não receba novas atribuições.”

Segundo Bandeira de Mello, a tendência é que algumas das ações pendentes da Renova sejam transformadas em obrigações de pagamento das mineradoras para que o poder público as conclua.

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) exige que a repactuação inclua parte do “Programa Rio Doce sem Fome”, elaborado pela sociedade civil, além de ações para a retomada produtiva das comunidades, transferência de renda e gestão transparente e compartilhada das reparações.

Relator da comissão externa da Câmara, o deputado Helder Salomão (PT) disse que o colegiado vai contribuir para que a repactuação dos acordos seja efetiva na nova indenização dos atingidos, diante de tamanho atraso.

Audiência

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou na sexta-feira, 4 de fevereiro, a terceira audiência pública para ouvir atingidos, especialistas e demais envolvidos no rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana.

Especialistas defenderam que as vítimas tenham participação decisiva no processo de repactuação das consequências do desastre ambiental. A conselheira do CNJ, Flávia Pessoa, reforçou a urgência da cooperação entre todos os envolvidos, pois a espera por uma solução já é aguardada há seis anos por milhares de pessoas que foram afetadas pelo rompimento da barragem em Mariana.

“O rompimento da barragem é um dos maiores desastres ambientais do mundo e causou danos econômicos sociais e ambientais que até hoje não foram reparados. Os problemas decorrentes do rompimento requerem atenção e comprometimento das autoridades, das instituições e de toda sociedade civil para que possamos construir uma solução coletiva e dialogada que contemple os diversos interesses envolvidos”, disse Flávia Pessoa.

Já o conselheiro do CNJ, Luiz Fernando Bandeira de Mello, reafirmou a relevância de ouvir os relatos de quem mais foi afetada pela tragédia. “São justamente as pessoas que mais importam nesse processo. Elas é que vão poder continuar a dar seus depoimentos carregados de sentimento e de uma experiência pessoal difícil vivida por todos. Nosso compromisso aqui é poder, na medida do possível, atendê-los e tentar reparar esse dano terrível, do ponto de vista econômico, social e pessoal.”

De acordo com a professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Flávia Vieira, a ciência considera que o protagonismo das pessoas afetadas é primordial para uma reparação eficiente. Essa tese, inclusive, é uma das conclusões do relatório final da Comissão Mundial de Barragens, publicado em 2000.

Porém, a docente, que tem 20 anos de experiência na área, afirma que é comum ver as reivindicações das vítimas minimizados nos processos de reparação. Elas acabam tendo que buscar comprovação técnica de seus prejuízos e, ainda assim, os laudos, documentos e testemunhas são desrespeitados.

“No desastre de Fundão, o que tenho podido empiricamente verificar e analisar é um perverso fenômeno que aceita e valoriza o conhecimento técnico quando contratado pelas empresas causadoras das violações, mas refuta e desvaloriza os saberes dos atingidos e, surpreendentemente, das assessorias técnicas que eles contratam. Nessa batalha, a balança pende de forma desigual para quem já tem historicamente mais poder político, social e econômico. É imprescindível que as instituições de Justiça, incumbidas na sociedade de garantir o equilíbrio da balança, desempenhem afirmativamente esse papel.”, afirmou a pesquisadora e coordenadora de projeto de extensão da UFRRJ que assessora há 30 anos pessoas atingidas por barragens.

Para a professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Raquel Lucena Paiva, até o nome usado para descrever o que aconteceu em novembro de 2015 explica a dificuldade em se obter a reparação completa. Seis anos após o acontecimento, os termos de ajuste de conduta assinados com as autoridades da Justiça não resolveram os problemas causados pela onda de lama que destruiu flora, fauna e a vida de quem morava nas margens do Rio Doce. A massa de rejeitos de minério de ferro percorreu 650km do interior de Minas Gerais até o litoral do Espírito Santo, onde poluiu o Oceano Atlântico.

“Eu estudo as disputas discursivas que ocorrem no contexto socioambiental dos desastres e no enfrentamento à mineração. Não é à toa que os atingidos afirmam desde o início que esse desastre não foi um acidente, foi um crime que deveria ter sido evitado. É importante compreender que disputas narrativas não são questões abstratas. Elas trazem consequências concretas para a vida das pessoas. A pressuposição de que houve um acidente – e não um crime – justifica a gestão da reparação praticada pela Fundação Renova. Se foi um crime, como permitir que os criminosos cuidem do bem-estar das vítimas? É preciso tratar as rés como rés”, afirmou a professora, que conviveu com a lama como moradora do litoral do Espírito Santo.

Atingidos por barragens pedem que impactos das enchentes sejam incluídos na nova repactuação de Mariana e Brumadinho
Foto: Luiz Silveira/CNJ

A produtora rural Elaine Ambrósio é uma das vítimas do desastre. A moradora do município de Conselheiro Pena exibiu um filme feito a partir de vídeos produzidos por moradores das regiões que margeavam o Rio Doce em Minas Gerais e no Espírito Santo. “Muito nos decepciona, pois após seis anos temos de recorrer a cada um de vocês aqui presentes para lutar por direitos adquiridos em acordos assinados pelas empresas e não cumpridos. Há seis anos, convivemos e sofremos com a lama de rejeitos que matam não só rios, mas destroem o trabalho, as esperanças e futuro das famílias.”

Dom Vicente Ferreira, da Comissão Episcopal de Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), vive em Brumadinho desde 2019 e se disse preocupado com o atual processo de reparação e compensação. O religioso afirmou que a mineração está sendo uma “tragédia para os sonhos das pessoas” e que tem visto “territórios de pessoas adoecidas”, uma crise que tem sido agravada pelas recentes enchentes que assolam o estado.

“O Papa Francisco nos ensina que atravessamos uma grande crise socioambiental. Não há como separar a dor humana da dor do nosso planeta Terra. O que vemos em Mariana e em Brumadinho é o que a mineração tem feito conosco, um grande buraco na terra e nos corações das pessoas. Esse é o primeiro testemunho que trago dos nossos territórios”, afirmou Dom Vicente.

O juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região (TRT17), Luiz Eduardo Fontenelle, representando a Associação Juízes pela Democracia, criticou o protagonismo do poder econômico no processo e destacou os obstáculos que têm sido criados para comprovar os prejuízos causados a milhares de pessoas que perderam moradia, trabalho e renda.

“O Termo de 2016 executou apenas 10% dos programas de reparação alinhavados na época. A Fundação Renova, mantida justamente pelas empresas responsáveis pelas barragens – Samarco, Vale e BHP – que se encarregou de programas emergenciais, no final de 2019, com mais de 80% do orçamento comprometido, atendeu apenas à metade das solicitações de cadastro, pagou auxílio emergencial a apenas 40% dessa metade e indenizações, à cerca de um terço dos cadastrados.”

Para Jarbas Vieira, secretário do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, novos desastres ambientais seguem acontecendo sem a mesma visibilidade, enquanto os afetados não veem punição aos causadores da destruição. Vieira relatou se sentir impotente diante de um “sistema político refém das mineradoras”.

“Não é coincidência que houve um rompimento em Mariana e seis anos depois estamos sem solução. Não é coincidência que houve um rompimento em Brumadinho, não é coincidência que houve o envio ilegal de rejeitos de minério em Barcarena, o vazamento em Godofredo Viana em 2021. As sirenes que tocam cotidianamente, todo o caos psicológico que acontece com essas famílias e outras atingidas que perderam seus familiares e nada acontece. Há uma grande impunidade, há um sentimento geral de quem enfrenta a mineração dentro dos territórios de que estamos lutando para sobreviver e enfrentar um dragão invencível”, afirmou.

Além das audiências públicas, o CNJ realiza rodadas temáticas de negociações entre as diferentes partes envolvidas em Brasília, Minas Gerais e Espírito Santo. Nesta semana, um outro encontro marcará uma nova tentativa de discutir com maior profundidade as diferentes demandas da reparação e compensação socioambiental.

Indenizações

As indenizações e auxílios financeiros emergenciais pagos pela Renova por danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, atingiram mais de R$ 8,71 bilhões até o fim do ano passado e atenderam cerca de 363,5 mil pessoas. Desse total, cerca de R$ 5,64 bilhões foram liberados em 2021. Segundo a fundação, o valor é 182% superior ao previsto inicialmente para aquele ano, R$ 2 bilhões.

Pedidos de indenização paralisados

Atingidos por barragens pedem que impactos das enchentes sejam incluídos na nova repactuação de Mariana e Brumadinho
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Dez mil processos de indenizações da tragédia de Mariana estão paralisados, porque não há juiz na 12ª Vara Federal de Minas Gerais para julgar os processos, de acordo com o ex-prefeito da cidade e secretário executivo do Fórum de Prefeitos, Duarte Junior.

O responsável pelos processos era Mário de Paula Franco, mas ele foi transferido da 12ª Vara Federal de Minas Gerais para o Tribunal Regional Eleitoral do Amapá (TRE-AP). O juiz foi alvo de questionamentos por parte do Ministério Público Federal (MPF).

Ainda segundo Duarte Junior, as indenizações são, em média, no valor de R$ 100 mil. Cerca de 40 mil pessoas aderiram ao sistema simplificado, instituído pelo judiciário como uma alternativa para a reparação aos atingidos. Porém, segundo o ex-prefeito de Mariana, não há ninguém para firmar os compromissos.

Este site utiliza cookies para melhorar sua experiência. Presumiremos que você concorda com isso, mas você pode cancelar se desejar. aceitar LER MAIS