Após sair de uma palestra sobre filosofia e literatura, ela, dona de uma bela perspectiva no olhar onde as coisas todas se vertiam em apego enquanto durava, amava a vida assim como a morte. Olhava o brilho nos olhos da filósofa que falava grandiosa na frente da sala, os braços que iam acima e abaixo traçavam um imenso paralelo ao passo que diluía toda a vida em tanto e nada, em prosa e poesia, tudo se fundia, para o alívio de Judite que teve um ensejo de mais um pequeno grande caminho passar, escutar, ver. Ao sair dali precisava comer pela fome crucial que já ao meio do dia a atormentava, as duas bananas que trouxera no estômago já haviam ruído com o esforço da mente que agia como um vulcão em seus plenos 23 mil anos.
Na padaria da Rua Rouchedól daquela cidade interiorana, cidade de vastos encontros acadêmicos ela, vez por outra, passava em busca de um dia de mentalismos, acreditava na razão quando estava perto de alguns filósofos. Comeu pãezinhos leves e pequenos de sal, mais o café, seu dinheiro era pouco, só para necessidade mesmo de um estômago todo vazio. No som que envolvia o ar da padaria tocara Rita Lee, uma de suas cantoras favoritas. Fez um leve balançar com o corpo ao mastigar, de olhos fechados, meio pedaço de pãozinho elevado à altura da boca; bonita a dança de meio minuto. Engoliu o café já em resto, mas só após mirar o estouro de três minúsculas bolhas que formavam no fundo da xicrinha branca. O ônibus saía às uma e meia da tarde, pagou o preço do pão, do café e se foi, a rodoviária era a quarenta minutos dali em passo lerdo, como Judite caminhava. No caminho cruzou com velhas de roupas muito coloridas, adolescentes assustados, adultos incrustados levando à mão crianças possuidoras da ilusão em seu mais alto e leve tom. Cruzou doentes, fumantes e executivos porcos, era uma avenida, virou à esquerda, se deteve com uma maçã que aparentava ter sido mordida uma só vez, isso numa viela escura de casas antigas, sempre sua preferida, ali passara sempre por causa do silêncio mórbido da rua e de quem vivia ali. O mosquito penetrava o buraco da maçã, Judite viu no ato comunhão. Diferente da avenida essa rua tinha um aspecto forte. Sua calça pantalona marrom cortejava vielas empedradas até alcançar a rodoviária e sua arquitetura era moderna, poucas pessoas, para o conforto estético da visão de Judite, acreditava no pouco concreto sob densa natureza, ali era assim, a rodoviária ficava num extremo da cidade, os pássaros cantavam e eram bem ouvidos. Entra no ônibus que parte para o arraial onde mora. Lia um livreto de poesias eróticas, sentia excitação nas ilustrações rabiscadas, interrompia cada poesia com minutos a olhar pra paisagem, paisagem da qual amava, tirava sua tristeza e oferecia leveza. As formas sublimes do matagal. Ao adentrar numa via estreita de terra o ônibus reduz, a paisagem é mais observoza. Judite desce do ônibus que para na frente da igreja barroca, o ponto central do lugarejo. Por gostar muito de toda onda daquela paz que há detrás da igreja ela penetra pelo portãozinho. Um gramado. Uma mangueira de frutos verdes. Um cemitério. Sempre-vivas e os sempre-mortos. Deita por cima da relva cheia de sombra, acende um fino cigarro de erva. Ora contempla as lápides, ora o jardim. Pensa que nem é triste nem alegre, apenas sorri, chora, sente glória e desprezo.
Se levanta, calma e mimetiza uma borboleta amarela-branca-clara que transpassou os ares de sua face. Pega sua mochila jeans, mais uma flor pequena-cheirosa do arvoredo que ladeia a igreja, tenta pender na manga da regata vermelha e justa. Entra na mansão de Cristo, contempla as esculturas e o ar melodramático de seus rostos, desce os olhos e segue no rumo de casa. No trajeto se recorda da morte, pois o dia morre no relento. Sempre volta o olhar para as jardineiras cheias de flores e folhas de chá das casinhas, adorno do arraial. A oitava casa depois da igreja é onde habita a avó mais a mãe e ela mesma. Sobe as escadas, entra, na sala a mãe borda palavras e jasmins num pano azul celeste, beijam-se. No corredor topa com a avó já desprovida do peso da lucidez, Judite admira, beija-a. A velha não retribui, olha com olhar vazio de dentro da camisola. Diz que nada diz e frases de pouco e nenhum sentido, são para Judite como bela música instrumental: “Eustaquinho,… Nóssassinhóra! eu falei que, mamãe… coitadinhos dos meninos…” A velha olha de novo, olhar vazio e gargalha ao longe seguindo o corredor, Judite gargalha junto.